Das conclusões estapafúrdias vendidas pelo saber jurídico e seus amantes da governamentalidade acerca da paralisação policial no Espírito Santo (2017) – Por Guilherme Moreira Pires

19/04/2017

"É preciso ir além do limite (...) romper com a conservação do passado e fazer irromper o presente."

Edson Passetti

No dia 09 de fevereiro de 2017, foi publicado breve artigo de minha autoria intitulado "Autoridades jogando com vidas no Espírito Santo", no contexto da "greve policial" na região[1]. Acontecimento profundamente capturada pelas narrativas estruturantes de culturas repressivas, atreladas a uma recorrente cegueira para a complexidade da vida e interações humanas.

No escrito, foram oferecidas leituras destoantes dos recortes do senso comum autoritário e suas produções midiaticamente bombardeadas, assinalando superações e rupturas para com as lorotas e interesses mútuos dos envolvidos, antecipando que as principais ressonâncias nefastas ocorreriam não durante a "greve", mas precisamente após a "greve", sedimentando narrativas autoritárias que se sagraram vencedoras na boca dos cidadãos-polícia, energizando o autoritarismo e o carcereiro interior de sujeitos múltiplos, atiçados pela crença na imprescindibilidade de controle austero e incessante.

Na ocasião, sugeri também, como uma leitura potente e destoante dos reducionistas recortes do senso comum que rapidamente emergiram nacionalmente, o escrito "Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército" do pesquisador Acácio Augusto[2], abrangendo explicações mais detalhadas sobre a então situação do Espírito Santo e sua cronologia no contexto da paralisação da Polícia Militar e suas ressonâncias.

Hoje, a lembrança dessa sequência de disputas no Espírito Santo, é recobrada por juristas badalados, que povoam aulas e salas de cursinhos no Brasil, como exemplo da necessidade de controles e repressões estáveis, permanentes, asseguradoras do que vislumbram como ordem e normalidade, como "paz social". Nessa esteira, o ocorrido no Espírito Santo converteu-se, ou melhor, foi capturado, esticado e reduzido, a um coringa a ser invocado para embasar a imprescindibilidade de produções repressivas, entre elas, o que intitulam como "sistema de justiça criminal" ou tautologia substituta.

Narrativas que operaram potencializando o desejo de autoridade e a cartada da repressão, que, na atualidade das sociedades de controle, tão bem parasitam os cidadãos-polícia, obedientes recipientes da razão de governo e de Estado, bem como do princípio da autoridade tão atrelado à punição. Produções que, como destaquei na ocasião, legitimariam o amanhã.

A miséria do saber jurídico também muito contribui para as novas deformações da atualidade. O exemplo do Espírito Santo tem sido invocado inclusive como uma carta antiabolicionista. Em toda sua simplicidade rasteira, os juristas nacionais se dispõem a tecer algumas palavras sobre o Espírito Santo, em suas estapafúrdias sínteses sobre "o abolicionismo penal".

Concluem, como os bons condutores de consciências que são, que trata-se da prova cabal de impossibilidade de um mundo sem produções repressivas. Concluem, em verdade, que é impossível um mundo sem direção e governo, sem repressão e castigo. Concluem pela imprescindibilidade do que são: condutores de consciências.

Entendemos o que produzimos? O uso do Espírito Santo figurando como exemplo validador de culturas repressivas já se mostra uma tendência sedimentada, covarde e ultrajante, estruturada na legitimação do princípio da autoridade, e que explicita cristalinamente o teor da paradoxal fragilidade da manutenção de controles e hierarquias, desde o referencial de um projeto de mundo verticalizado dirigido por autoridades e absurdo nível de coesão forjada e/ou estimulada, no imbecilizante ritmo da versatilidade dos controles.

Mastigarei para os que só vivem de conteúdo mastigado. É ultrajante que o ocorrido no Espírito Santo seja invocado como prova de que "abolicionismos foram refutados", no embalo dos gurus dos concursos do Brasil. É ultrajante que o aludido cenário, infestado de produções repressivas e atuação policial, seja elencado como "sem polícia", quando essa mesma polícia influenciou e inflamou esse mesmo cenário.

Afirmar ter inexistido participação policial, pode indicar desconhecimento dos fatos. Ou, ainda, como noutros contextos já utilizou Alexandre Morais da Rosa, "canalhice ou burrice". Em certos casos, talvez uma boa dose de cada.

Para tornar mais complexo, há que se dar um desconto, e recobrar como somos adestrados nessas linguagens, mas sem relativismos colossais, a ponto de complacentemente aceitarmos tais misérias do pensamento político (de esquerdas e direitas), como se essas autoridades tolas fossem.

No caso da instrumentalização do exemplo-Espírito Santo nesse sentido sublinhado por penalistas-estrelas (estrelas repressivas, é claro), mostra-se possível vislumbrar uma boa dose de cada uma dessas coisas. Nada exatamente inesperado, por óbvio.

Como prefaciou Gustavo Noronha de Ávila (2017): "Se uma sociedade sem penas já existe (vide categoria criminológica da 'cifra oculta'), falta justamente reconhecer este fato e entender suas repercussões"[3], se apartando do senso comum naturalizado e cristalizado dos (e nos) amantes da governamentalidade, também estruturante das produções repressivas indutoras de dor intencional por ele mencionadas, para muito além da questão criminal, da linguagem-crime, e da cegueira jurídica.


Notas e Referências:

[1] PIRES, Guilherme Moreira. Autoridades jogando com vidas no Espírito Santo. Canal Ciências Criminais, 2017. Disponível em: < https:canalcienciascriminais.com.br/vidas-no-espirito-santo/> ISSN 2446-8150.

[2] AUGUSTO, Acácio. "Polícia para quem precisa de polícia: um relato sobre o banho de sangue no ES e os aplausos ao exército". 2017. Disponível em: <https:urucum.milharal.org/2017/02/07/policia-para-quem-precisa-de-policia-um-relato-sobre-o-banho-de-sangue-no-es-e-os-aplausos-ao-exercito/>.

[3] CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Política, Sociedade e Castigos: Ensaios libertários contra o princípio da autoridade e da punição. Editora Habitus: Santa Catarina, 2017.

PASSETTI, Edson. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo: Cortez, 2003.


 

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