Seguindo a série iniciada na coluna anterior, traz-se a questão da causa material das ações. Por se tratar de uma continuidade, a numeração dos itens seguirá a partir da última utilizada no texto anterior, qual seja a 2.2.
2.3. Da diversidade material da ação: o problema eficacial
O que compõe as ações? Analogamente, a resposta a esta pergunta passa pela ideia de matéria, ou seja: aquilo de que são feitos os entes.
Em termos mais jurídicos, refere-se ao problema das eficácias acionais, a serem destrinçadas abaixo. Eficácia é um poder, no sentido possibilidade de algo produzir determinado efeito. É, em suma, uma potencialidade. Um exemplo bem trivial pode auxiliar à compreensão: a eficácia de um revólver é o seu poder de destruição, algo que lhe é intrínseco; outra coisa é a efetiva destruição causada pelo acionamento do revólver, esta já é algo fora dele, embora dele decorrente.
Contudo, em sendo assim, uma questão prévia se coloca: sendo a ação um ente, de modo que algo já atualizado, como se pode dizer que a matéria que a compõe é uma “simples” potência?
A resposta não é tão simples, mas perpassa pelos cânones da Teoria do Fato Jurídico aqui adotada. A ação, porquanto, em tal teoria, seja efeito de um fato jurídico, está no sistema como atualização da potência referente à norma jurídica que a prevê. Ou seja, por força do suporte fático juridicizado, aquele poder dado a alguém para impor algo a outrem, que, antes, no plano normativo, era mera potência, atualiza-se, tornando-se um dado de realidade, fenomênico, visto que um indivíduo o titulariza contra outro. O poder de impor já não é mais simples possibilidade, pois já existe no mundo do ser.
A ação, porém, não é a próprio efeito almejado. Uma ação anulatória não é a anulação do ato; é apenas a possibilidade de isto ocorrer. Daí se dizer que a ação é potência, ou melhor: contém potências. Estas (a quem se prefere aqui denominar de eficácias, pois que nomenclatura mais rente à Dogmática Jurídica) são como que a matéria da ação. Quando do exercício desta (por intermédio de um ato jurídico), o relato (comunicação de fato) de tais eficácias será a matéria componente do ato de exercício.
2.3.1. Das eficácias acionais: das categorias fundamentais à relação entre elas
A multiplicidade material de eficácias acionais é dado inegável. Reintegração, anulação, declaração, condenação, expropriação, rescisão, resolução, compensação, autorização, mandamento, nulificação, desapossamento, imissão, despejamento são muitas das tantas existentes. Mais, é possível dizer que, por cada uma ter um complemento necessário (reintegração de posse, declaração de falsidade, condenação a ressarcir, rescisão de sentença, dentre muitos outros casos), o nível de complexidade praticamente impossibilita qualquer catalogação.
Cientificamente faz-se necessário, por isso, extrair os predicamentos das eficácias, de modo a estabelecer categorias fundamentais que as abarquem. E é exatamente isso que se faz – embora de modo incompleto e imperfeito – quando se alude às eficácias declaratória, constitutiva e condenatória como as concernentes às diversas ações.
Incompleto pelo fato de, por motivos variados, se ignorar a existência de outras duas categorias, ou, de modo mais ainda censurável, dizê-las meros efeitos da condenação. Estar-se a aludir, obviamente, à eficácia mandamental e à executiva.
Imperfeito, pois não só deixa de se ater ao que, de fato, importa para a conceituação da eficácia (o efeito produzido caso ela seu mecanismo seja “acionado”, para lembrar da analogia com o revólver feita anteriormente), bem como, e isto muito em virtude do primeiro defeito, não se perceba, de início, a multiplicidade de eficácias que toda e qualquer ação contém e, em consequência, a relação de antecedência (onto)lógica que pode existir entre as eficácias. Havendo, por fim, imperfeição quando não se observa (ou, no mínimo, nada se diz sobre) que tais eficácias podem ter um sentido inverso, isto é: a declaração ser negativa, a mudança ser para desconstituir, ao acusado conceder-se a absolvição etc.
Há, porém, toda a doutrina de Pontes de Miranda acerca da temática, que, inegavelmente, se trata de algo deveras clarificador. É imperioso, contudo, esclarecer determinados pontos das muitas ideias lançadas pelo Alagoano (algo já feito por alguns, de modo mais ou menos completo e preciso). Neste trabalho, quando for algo afeito a seus objetivos, tal empreendimento será realizado, logo a seguir ou alhures.
Neste momento, duas questões se põem: i) o porquê de todas as eficácias possíveis poderem ser sintetizadas nas cinco categorias mencionadas acima e (ii) a relação de antecedência (onto)lógica existente entre as eficácias acionais. //
2.3.1.1. A razão da existência de “apenas” cinco categorias de eficácias acionais
Em qualquer categorização deve-se verificar se uma determinada espécie é pertinente a um determinado gênero. Para tanto, faz-se necessário saber se a espécie escolhida é pertinente à diferença específica entre o gênero indicado e aqueloutro que o abarca. O ser humano, por exemplo, é um animal pelo fato de, dotado de sensibilidade (diferença específica), ser um ente vivente (gênero próximo referente à espécie animal).
A ação de reintegração de posse é executiva pois possibilita, via desapossamento do réu e, com isso, reatribuição da coisa esbulhada ao autor, uma transmutação entre as esferas jurídicas de ambos (diferença específica) por intermédio de um agir impositivo (gênero próximo em relação à espécie execução) ao primeiro em benefício do último.
Pelo exemplo, observa-se que se vai de uma espécie mais determinada a um gênero bem mais amplo. Ocorre que este já é tomado de antemão. Ou seja, no caso, o conceito de execução (transmutação das esferas jurídicas) não foi objeto de discussão prévia, foi tomado como verdadeira premissa do raciocínio. Isto porque toda construção há de partir de uma noção minimamente pré-estabelecida, sob pena de um regresso ao infinito, logo de todo impossível de ser feita.
No caso deste trabalho, tem-se o conceito de ação (poder de imposição de algo a alguém). Trata-se do gênero máximo a que se pode ir; mais genérico a ele seria o próprio conceito de poder, ao menos em seu sentido “estritamente” jurídico. Deste conceito, outros podem ser deduzidos, pois dele derivam. Resta saber, dentre os muitos desses conceitos possíveis, quais são aqueles que, reduzidos ao mais amplo (ação), diferenciem-se entre si.
Longe de ser uma tarefa fácil; é possível dizê-la dificílima, já que, como visto acima, são inúmeras as espécies e, mais ainda, os indivíduos. Muito por isso e, mais, por não ser este o objeto do trabalho, partir-se-á das cinco categorias mencionadas: declaração, constituição, condenação, mandamento e execução, estabelecendo-se, a partir da doutrina ponteana, a definição delas, uma a uma, para, com isso, utilizando-se de exemplos, verificar se, primeiramente, não há incompatibilidade classificatória, ou seja, se a essência de cada uma delas difere de qualquer outra, e, em seguida, também com base em exemplos, verificar se não seria possível falar numa sexta espécie e outras que possam vir em sucessão.
Utilizar-se-á de uma ordem a fim de facilitar a compreensão:
i) a eficácia declaratória baseia-se no reconhecimento de um dado pretérito[1]. Logo, é próprio desse tipo eficacial o voltar-se ao passado, mas não no sentido de mudar algo lá ocorrido (efeito retroativo). Esse voltar-se é o de alguém que, pelos meios que fazem isso ser possível (as provas, amplamente falando), “enxerga” aquilo que ocorreu ou não A eficácia declaratória existe a fim de tornar claro (Pontes de Miranda) o dado pretérito, uma vez que paira incerteza quanto ocorrência dele.
ii) já a eficácia constitutiva liga-se à ideia de mudança[2]. É aquela que, por essência, tem a ver com a passagem da potência ao Eis a razão de toda ação ter um quê de constitutividade, porquanto, antes de tudo, crie a própria condição para a produção das demais eficácias. Nalgumas, porém, a mudança é o próprio fim almejado, algo que permite, pela prevalência, nominar a ação de constitutiva. A mudança, contudo, pode ser de substância, de quantidade e de qualidade. No primeiro caso, tem-se tanto a geração (constituição), como nas ações homologatórias, como a corrupção (desconstituição), como nas ações de rescisão e de anulação; no segundo e no terceiro caso, tem-se o aumento e a diminuição, na quantidade, e a alteração, na qualidade, como efeitos pretendidos. É o que ocorre nas ações revisionais.
iii) por sua vez, a eficácia condenatória refere-se a ideia de imputação de algo indevido a alguém. Em termos jurídicos, esse indevido é a contrariedade a direito, o descumprimento de dever. Toda condenação tem a ver, portanto, com um ilícito. Em suma, o condenar é a emissão de um juízo reprobatório de uma conduta indevida. “Condenar é ordenar que sofra”, diz Pontes de Miranda. Em toda e qualquer ação fundada num ilícito cometido pelo sujeito passivo o elemento condenatório estará presente, seja como fim, seja como meio. Na ação anulatória de compra e venda fundada em dolo do vendedor, por exemplo, condena-se o réu-vendedor pelo ato lesivo (o dolo) para, em virtude disso, anular o contrato em benefício do autor-comprador. Já nas ações indenizatórias a condenação é o elemento preponderante[3]. Isto pelo fato de ser necessário punir o causador do dano, impondo-lhe a reparação, que já deveria ter ocorrido, logo o descumprimento está na ausência do ressarcimento devido. Sendo o dano oriundo de um agir ilícito, a condenação é ainda mais preponderante, uma vez que, além da reprovação pelo não ressarcimento, há a reprovação pelo próprio ilícito danoso. O lado oposto da condenação é o juízo de absolvição (como defende Eduardo José da Fonseca Costa), tão caro no âmbito processual penal. A absolvição não é uma declaração de não cometimento de ilícito, é um manto de idoneidade colocado sobre aquele que foi acusado;
iv) a seu turno, a mandamentalidade tem a ver com o binômio autoridade/submetido. É própria de toda e qualquer decisão, porquanto só é possível falar em agir decisório se o agente estiver em posição de submeter alguém. Não há como existir decisionabilidade entre iguais. Por isso, tal como defende Pontes de Miranda, toda decisão tem eficácia mandamental, até mesmo aquelas ditas “meramente” (sic[4]) declaratórias. A ordem, entretanto, somente se faz necessária se o ato do ordenado não puder ser praticado de outro modo. Há uma espécie de dupla exclusividade: só a autoridade pode emitir a ordem, pois que se encontra em posição superior; só o submetido pode cumprir a ordem, porquanto dele dependa o resultado esperado. Ocorre que o submetido à ordem não é necessariamente alguém que sofra as consequências do cumprimento dela. É preciso, desse modo, diferenciar o destinatário da ordem daquele que sofre as consequências em virtude dela. Este último é o réu da ação; aquele, o detentor do poder de praticar o ato ordenado[5]. Na ação de manutenção de posse, por exemplo, o destinatário da ordem é o próprio réu-turbador, já que o não turbar (conduta desejada) é devido por ele. Já na ação de cancelamento de protesto o destinatário da ordem não é o beneficiário do título protestado, mas sim o tabelião de protesto, que é quem tem o poder de cancelar. Observe-se que, neste caso, o tabelião de protesto nada sofre em virtude da ordem de cancelamento, sua esfera jurídica não é diminuída por conta disso; quem sofre os efeitos do cancelamento é o beneficiário do título, que passa a não poder fruir dos efeitos do protesto. A eficácia mandamental, além disso, nem sempre está atrelada a um agir ilícito. Na ação de alvará referente a valores depositados em conta de FGTS movida pelos herdeiros do beneficiário há a presença preponderante do elemento mandamental, uma vez que se ordenará ao agente gestor do fundo a liberação dos valores depositados sem que nada de ilícito ele tenha cometido. Quando relacionados, a mandamentalidade é uma consequência punitiva pelo agir ilícito, decorrente sempre de condenação por força dele;
v) por último, a Ela possibilita uma transmutação das esferas jurídicas. Ou seja, algo sai de um lugar e vai para outro[6]. Tem-se, aqui, a ideia de movimento como mudança de lugar. Retira-se algo de alguém, atribuindo-o a outrem. Univocamente, isto ocorre no desapossamento, porque coisa é retirada do réu (ou, em se tratando de imóvel, ele sendo dela retirado) e, em consequência, dada (por entrega ou restituição) ao autor. Em menor grau, já como analogia, tem-se execução na expropriação por adjudicação ao credor, porquanto é tirado bem pertencente ao devedor (logo, o bem deste se afasta) para atribuí-lo ao credor[7]. Também em analogia, há execução na alienação de bens do devedor e na adjudicação com obtenção de dinheiro em favor do credor[8]. Na chamada transformação, na qual a dívida passa a ser de pagar pelo fato de o fazer devido ter sido realizado às expensas do credor, tem-se uma carga analógica ainda maior em relação à ideia de execução, pois que a retirada de algo do devedor dá-se como resultado da alteração da dívida. Se na adjudicação em favor do credor, tira-se algo do devedor para, com ele, pagar-se ao credor; na transformação, a alteração da dívida é condição necessária para que se possa retirar algo do devedor. Por fim, menor univocidade ainda se tem na execução por substituição. Nesta, simplesmente não se chegar sequer a tocar na esfera jurídica do executado, visto que se atribui ao ato de outrem a mesma força do ato devido por ele. Isto só é viável porque o que se almeja é algo a operar no mundo “meramente” jurídico. A transmissão da propriedade imobiliária, por exemplo, que depende de emissão de declaração de vontade por aquele que prometeu alienar, passa a depender apenas de uma decisão, pois esta é condição suficiente para produzir o mesmo efeito da declaração de vontade não emitida. Trata-se, por isso, de mudança muito mais no sentido constitutivo do termo do que propriamente no executivo.
De todo o exposto, percebe-se que tais categorias, posto que se relacionem, diferem substancialmente. Nenhuma delas é simples reflexo ou mera decorrência de outra. Não se pode, por exemplo, reduzir a eficácia executiva a simples efeito da condenação porque, do contrário, não só se ignoraria o fato de a condenação poder produzir outros efeitos, como a desconstituição do ato jurídico da ação anulatória decorrente de agir ilícito do réu, bem como se olvidaria a possibilidade de execução sem condenação, como acontece na ação de adjudicação de herança jacente movida pelo herdeiro que atendeu ao chamado lhe feito no procedimento da arrecadação dos bens hereditários. Aqui, embora a transmissão do bem tenha se dado com a abertura da sucessão, é preciso atribuir a posse deles ao herdeiro comparecente, já que, até então, se encontravam na esfera jurídica da herança. Como se sabe, o estado de jacência nada tem a ver com qualquer tipo de ilicitude.
Algo análogo ocorre na equivocada mistura feita entre a condenação e o mandamento. Além de, como demonstrado, ser possível que ele independa de qualquer tipo de ilicitude (condição necessária dela), por vezes pode ser utilizado em decorrência dela, como medida paralela ou substitutiva da medida executiva. Ou seja, tanto não se confundem que o mandamento pode ser decorrência da condenação.
O certo é que, como bem demonstra Ovídio Baptista da Silva, tais eficácias compõem o conteúdo das decisões, não são algo externo a ele. “O fato da lâmpada iluminar-se não impede que ela também ilumine”, eis mais ou menos o teor da metáfora utilizada pelo professor gaúcho. Quando se condena e, em consequência, se ordena, a ordem não está fora da decisão, pelo fato de se tratar de algo a mais a preencher o conteúdo decisional.
Por fim, impende verificar se não é possível falar numa 6ª. (sexta) categoria para designar as eficácias acionais e, dela, outras sucessivamente. Trata-se de tarefa que somente pode ser realizada se, a partir da observação dos fatos, pinçar-se possibilidades a fim de checá-las com a hipótese sustentada, qual seja: a ocorrência de apenas cinco categorias. Tomando por base já certa tradição sobre o ponto, duas hipóteses são agora levantadas: i) a questão da exortação e (ii) o problema da cominação.
Quanto à primeira, deve-se refutar por um simples motivo. Diz-se que a exortação seria a eficácia que possibilita ao réu da ação cumprir o comando acional a ele imposto. O cumprimento lhe seria franqueado. Uma verdadeira chance de cumprir a ele seria dada. Há quem chegue a dizer que a eficácia condenatória consiste propriamente na exortação (como Pedro Henrique Pedrosa Nogueira). Ledo engano, que muito contribui para a má compreensão que se tem do real sentido do ato de condenar. Primeiro que, em existindo uma eficácia exortatória, ela seria apenas um efeito possível do ato de condenar: ao condenado, dar-se-ia uma chance de pagar, em vez de já se constrangê-lo a tanto. Ou seja, ao menos em hipótese, ter-se-ia a possibilidade de, ao condenar, ordenar o cumprimento ao condenado, iniciar a execução contra ele (com penhora de bens seus, por exemplo) ou franquear-lhe o cumprimento, numa exortação. Logo, equiparar o condenar ao exortar é confundir a causa com um (possível) efeito dela. Ademais, não há eficácia exortatória. O que se entende como direito de cumprir dado ao condenado (que, de fato, existe, como o é na decisão condenatória ao pagamento de quantia, caput do art. 523, CPC) é decorrente de uma eficácia modificativa da ação condenatória. Ou seja, vindo alguém a ser condenado, a relação obrigacional reconhecida na decisão é modificada com o acréscimo de um direito subjetivo à esfera jurídica do devedor. Algo análogo se tem no chamado direito ao parcelamento da dívida, previsto no art. 916, CPC. A exortação, em verdade, tem a ver com a categoria da constitutividade (no viés mudança quanto à qualidade, isto é, por alteração), não sendo ela, por isso, uma categoria própria.
Quanto à segunda, é preciso analisar sob dois aspectos: i) a cominação como punição e (ii) a cominação como premiação. No primeiro, caso da multa cominatória, há condenação sujeita à resolução: “cumpra sob pena de estar condenado a pagar uma multa”, eis um modelo de transcrição da cominação. Não à toa, tradicionalmente sem tem as chamadas ações cominatórias (típicas ao tempo do CPC de 1939, art. 302) como espécies de ações condenatórias (vide, por exemplo, Pontes de Miranda, acima de tudo no tomo 5 do seu Tratado das Ações). No segundo caso, o prêmio atribuído ao condenado, seja estabelecido por lei, por disposição negocial ou, até mesmo, por decisão (com esteio, acima de tudo, no § 1° do art. 536, CPC), refere-se, tal como se dá na dita exortação, a um direito atribuído ao condenado a fazer (incluindo o dar ou o pagar) ou deixar de fazer algo. Ou seja, um direito que decorre de uma eficácia constitutiva-modificativa atribuída à ação condenatória.
2.3.1.2. Do relacionamento entre as eficácias
Não há como uma ação ter apenas uma única eficácia. Esta ousada afirmação é, sem dúvida, das mais relevantes descobertas da processualística. Não que, para confirmar a correção teórica dela sejam necessárias maiores fundamentações. Para tanto, basta atentar para o fato de que, sendo um poder de impor algo a alguém, a ação não se resume à possibilidade de um simples dizer (constatatividade), trazendo consigo verdadeira interferência no mundo (perfomatividade).
Talvez a maior contribuição dada por Pontes de Miranda à Dogmática Processual seja a demonstração de que todas as ações são compostas de mais de uma eficácia. Estabelecendo serem cinco as espécies desta, o Alagoano, indo além, preconizou que, em qualquer ação, todas elas estão presentes.
Não é relevante, aqui, saber se há acerto na última afirmação. Necessário se faz, até por ser premissa de uma das conclusões a serem apresentadas, demonstrar que as eficácias existentes se relacionam entre si. Trata-se, além disso, de uma relação ontológica, de modo que uma determinada eficácia funciona como causa de outra[9].
Registre-se que a alusão à complexidade eficacial das ações refere-se a algo individualmente delimitado. Um indivíduo não é composto apenas de uma substância, mas sim formado pela união de, no mínimo, mais de uma. Isso tal como se diz que a água é composta de duas moléculas de hidrogênio e uma de oxigênio. Trata-se da chamada união substancial. Neste caso, uma ação ao conter eficácia declaratória e eficácia condenatória não existe como duas ações cumuladas, mas o é pelo fato de que a condenação pressupõe uma declaração. A ação condenatória é formada por declaração e condenação.
No caso das ações, a razão de sua complexidade eficacial está exatamente no fato de uma eficácia depender de outra. Mas como verificar esse escalonamento? Uma resposta possível parte da identificação da eficácia final. Ou seja, a partir do que, em verdade, a ação possibilita para seu titular. Do efeito consegue-se descobrir a causa, raciocínio propter quid. Observe-se o caso de uma ação condenatória por não pagamento de dívida contratualmente estabelecida. Para se obter a condenação do réu (eficácia fim) é necessário reconhecer a existência da dívida inadimplida (eficácia meio). Assim, esta última é causa da primeira. Frise-se que o sentido de eficácia final aqui empregado não tem a ver, necessariamente, com aquilo que vem por último, mas sim com a função, isto é: para o que determinado ente serve. No exemplo dado, advinda da condenação, pode-se ter uma eficácia executiva, mas a produção desta última não é a causa final da ação condenatória, até porque seu titular pode querer, dentro de sua liberdade, tão-somente a condenação.
Além disso, toda ação se baseia numa declaração, porquanto, sendo um dado da experiência, o agir impositivo (a suma propriedade acional) tenha a constatação desta como verdadeira condição de possibilidade[10]. Dá-se a essa declaração o adjetivo base, de modo a ser declaração-base, até porque é possível que, além dela, a ação tenha outra eficácia declaratória. É o que ocorre com as ações “meramente” declaratórias. Nelas, da declaração-base surge outra, dita declaração-fim. Na ação declaratória de existência de propriedade, por exemplo, existem a declaração do próprio poder de declarar (situação jurídica declarativa), algo ínsito a qualquer ação, e a declaração da existência da propriedade (situação jurídica declaranda). Esta é a declaração-fim; aquela, a basilar. Mais do que isso, a declaração-base, por ser a primeira na ordem causal[11], não tem nenhuma outra eficácia como seu pressuposto. Como efeito jurídico que é, decorre de um fato jurídico, sem que, porém, na composição deste exista outra eficácia acional.
Contudo, isso não é restrito às ações declaratórias. Na ação de nulidade, por exemplo, tem-se a declaração de ineficácia do ato nulo, que deriva da declaração da existência do poder de nulificar o mesmo ato, além, por óbvio, da eficácia desconstitutiva dele.
Está aí a justificação teórica da complexidade eficacial das ações.
Na próxima coluna, serão estabelecidas as bases para a compreensão do problema da causa final delas.
Notas e Referências
[1] O dado a que se refere acima é referente ao problema do chamado objeto da declaração, que foi, resumidamente, exposto alhures.
[2] Não é incomum atrelar as ações constitutivas aos direitos potestativos (também chamados de formativos), sendo Fredie Didier Jr., talvez, o mais destacado autor a fazê-lo. Entende-se, porém, tal posição como equivocada. A relação não é necessária. Conquanto seja certo que não sejam ligados a uma pretensão, porquanto não haja prestação devida pelo sujeito passivo, que apenas se submete ao ser exercício, é igualmente certo que há direitos potestativos ligados a ações declaratórias. É o caso da ação de compensação, que se baseia no exercício do direito a compensar (e, com isso, extinguir, com a anulação das dívidas recíprocas, a dívida do devedor-compensador para com o credor-compensado). Nela, não se desconstitui a dívida cobrada, já que isso se faz pelo simples exercício do direito a compensar, mas sim declara-se a ocorrência do efeito compensatório. Quando processualizada a ação, pede-se a declaração do mencionado efeito, e não a desconstituição da dívida. A decisão, desse modo, nada muda quanto à dívida, até por esta não mais existe. E, mais, é possível dizer que, quando o direito potestativo está atrelado a uma ação constitutiva, como nas ações anulatórias, há uma mitigação da força dele, já que se faz necessário outro ato para além de seu exercício para a mudança ser realizada. Na ação de anulação, como se sabe, não é o exercício do direito a anular que desconstitui o ato jurídico, mas sim a decisão judicial que a acolhe, sendo o exercício dele apenas um elemento do suporte fático da desconstituição. Ademais, sendo possível a anulação pelo próprio sujeito passivo, como ocorre nos atos administrativos, há pretensão à anulação paralela à ação anulatória, de modo que o titular do direito pode escolher entre exigir do sujeito passivo a desconstituição do ato ou propor a ação anulatória contra ele.
[3] Sem dúvida, a eficácia condenatória é mais polêmica e complexa de todas. Para uns, como José Carlos Barbosa Moreira, ela não está necessariamente ligada ao agir ilícito; para outros, como Ovídio Baptista da Silva, ela não tem presença no âmbito do direito material, sendo pura processualidade, posições estas que muito diferem das defendidas neste texto. Isso sem falar em outras posições sobre, como a de Enrico Tullio Liebman, com sua ideia de condenação como dupla declaração. De modo sintético, até por fugir à temática proposta, responde-se: i) à posição barbosiana de que há agir ilícito na condenação nas despesas processuais e nos honorários advocatícios, pois, em si, a propositura da ação e a defesa não são fatos ilícitos, deve-se dizer que, no caso, a condenação é referente ao futuro: por força da sucumbência (ou, sendo o caso, a pura causalidade), a parte deve pagar as despesas processuais e os honorários advocatícios e, caso não o faça, estará condenada, já que terá inadimplido. Trata-se, por óbvio, de condenação antecipada sujeita, porém, à condição resolutiva pela ocorrência do pagamento das dívidas reconhecidas; ii) à tese do segundo, o qual sustenta ser a condenação uma mera etapa para a satisfação do direito violado, algo que se dará com a execução, não havendo, por isso, no plano material, elemento condenatório, sendo ele interposto na eficácia acional pela norma processual, deve-se dizer o seguinte: primeiro, pode haver condenação sem que haja executividade, como no exemplo acima da ação anulatória por dolo; segundo, as ações não servem necessariamente a direitos, mas sim a interesses, muito mais difusos e, até mesmo, existentes fora do mundo jurídico, como os de ordem puramente moral, por exemplo. Neste caso, o ofendido pode não querer nada que advenha do ofensor, não querer que este o ressarça etc. Seu interesse pode ser apenas o de obter algo que reprove o ofensor, colocando-lhe uma marca pela mácula cometida.
[4] Tal como dito, não há sentença (e, por antecedência ontológica, ação) meramente declaratória. Uma sentença declaratória sempre vem, de modo implícito, enxertada de uma eficácia mandamental, a qual funciona como preceito do Estado-juiz dirigido a todos para que não atentem contra a certeza jurídica gerada pela declaração judicial. Caso o façam, é possível pleitear a execução indireta da sentença, por intermédio de medidas coercitivas. Um caso talvez ajude na compreensão. Suponha-se a existência de uma sentença declaratória da inexistência de uma dívida. Suponha-se, além disso, que a "dívida", declarada inexistente, esteja representada por um título, o qual vem a ser protestado. Ora, no caso, o protesto é fato do mundo real que atenta contra a eficácia mandamental da sentença declaratória, de modo que o prejudicado pode, de logo, pleitear a execução indireta da sentença. Não precisa, por óbvio, propor qualquer ação pela qual possa se discutir, de modo definitivo ou provisório, a dívida já declarada inexistente. Nesse sentido, as ditas cautelares inominadas de sustação de protesto, se ainda este não tiver sido consumado, ou, já tendo o sido, de cancelamento dele, medidas estas muito comuns como preparatórias da ação declaratória em questão, são, na verdade, meios que possibilitam a antecipação da eficácia mandamental da futura e provável sentença declaratória de inexistência da dívida consubstanciada no título a ser protestado ou, conforme o caso, já o feito. O uso de tal técnica como ação cautelar inominada deu-se pelo fato de, até 1994, como cediço, não termos, genericamente, a possibilidade de antecipação dos efeitos da tutela satisfativa do direito. Sobre a eficácia imediata mandamental da sentença de força declaratória, ver PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações. São Paulo: RT, 1970, t. 2, p. 62-63 e, especialmente, 77-79.
[5] É por isso que a posição processual da autoridade coatora no mandado de segurança e em meios análogos (como o habeas corpus) é a de destinatária da ordem. Não é ré da ação, pois que não sofre as consequências dela. Quando a conduta a ela atribuída for de natureza ilícita, há a possibilidade de a pessoa natural ocupante da função vir a sofrer, em sua esfera funcional (além de outras, como a cível e a penal), consequências reflexas da decisão. Isto legitima-a a intervir no feito, como terceira que pode ser prejudicada. Eis a razão de a Lei do Mandado de Segurança prever expressamente o recurso pela autoridade coatora.
[6] É necessário distinguir a mudança de lugar em duas perspectivas: uma de um ponto de vista ideal, no mundo jurídico; outra, na própria realidade. Observe-se, como exemplo, a sentença na ação de reintegração de posse, tipicamente uma ação executiva. Com sua prolação, já se opera a mudança da posse da coisa, de modo que o réu-esbulhador já resta juridicamente desapossado. É preciso, todavia, descer à realidade, concretizando o desapossamento. Isto, porém, dar-se-á como uma decorrência direta da eficácia sentencial, e não por intermédio de outra decisão. O juiz já determina: “reintegre o autor na posse da coisa esbulhada”. Sem isso, a decisão não passaria de uma simples condenação pelo esbulho cometido. Tanto não é “apenas” condenatória que há a pronúncia do comando acima (em rigor, uma ordem dada àquele que tem o poder de reintegrar, como um oficial de justiça e, até mesmo, o braço policial do Estado). Assim, o mandado de reintegração de posse é, numa metáfora, um braço da decisão que desce à realidade fática.
[7] A adjudicação ao credor é execução em menor univocidade do que o desapossamento, pois que acarreta uma alteração (mudança na qualidade) na ação executiva. Esta passa não mais a ser uma ação para a obtenção de dinheiro, mas sim, por exercício do direito potestativo do credor a adjudicar, para atribuição do bem penhorado ao credor.
[8] Aqui, a menor univocidade deve-se ao fato de também haver uma alteração, não na ação em si, mas sim na situação do acionado, já que este não perde dinheiro propriamente, mas sim um bem, cuja “saída” de sua esfera resultou em dinheiro em favor do autor. Contudo, há maior univocidade em relação à ideia de execução do que na adjudicação em favor do credor.
[9] Em rigor, a causa mesma dá-se pelo efeito da eficácia antecedente, não ela própria. Isto é, quando do ato, o agir impositivo. Por exemplo, por força da condenação do devedor a pagar, forma-se título executivo (eficácia executiva da decisão condenatória) contra ele. Mas isso só ocorre porque, em potência, uma eficácia contém outra. Eis o motivo de, metonimicamente, se ter dito, como se continuará a dizer, ser determinada eficácia causada por outra.
[10] Em termos sentenciais, para onde, ao menos em potência, se destinam a imensa maioria das ações, isso fica mais evidente, pois, por ser um dado linguístico, toda decisão pressupõe um dizer (dictum) sobre aquilo que foi posto à discussão. Por menor que seja, as decisões – até mesmo aquelas antecipatórias da tutela – têm um dizer. No caso destas, o dizer é relativo à pretensão processual a antecipar, que tem o Estado-juiz como sujeito passivo, obrigado a prestá-la. A parte constatativa (o dictum) das decisões antecipatórias da tutela, que tem na ideia de “antecipação da cognição” de Pontes de Miranda sua base epistêmica, é comumente ignorada pela processualística brasileira em geral.
[11] Rigorosamente, a primeira das eficácias na ordem causal é a constitutividade-mínima, pois o implemento de toda ação cria a situação para a produção das demais eficácias, incluindo a declaração-base. Isso se dá porque todo agir opera uma mudança na realidade. Em virtude de sua obviedade e do fato de não ter maiores consequências jurídicas (diferentemente da declaração-base, que é, além de tudo, condição de possibilidade para a formação da coisa julgada), sequer se fez alusão a ela no texto principal.
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