Coluna Práxis / Coordenadoras Juliana Lopes Ferreira e Fabiana Aldaci Lanke
Na década de 70, o filósofo alemão Bert Hellinger desenvolve a constelação familiar como uma abordagem sistêmico-fenomenológica a partir da observação de várias abordagens, inclusive dos aprendizados adquiridos com as esculturas familiares, da assistente social Virginia Satir [1].
Conhecida por ser uma prática sistêmica orientada por soluções [2], a constelação familiar desvela dinâmicas não vistas e existentes nos sistemas familiares ou organizacionais, expressadas através de comportamentos que replicam padrões geralmente produtores de conflitos e sofrimentos.
Na área jurídica, a constelação ganhou destaque em 2012 com a prática “Constelação na Justiça”, do juiz da Bahia Sami Storch, precursor da utilização da abordagem no Judiciário. Os resultados do projeto revelaram ser uma forma humanizada de tratar o conflito, contribuindo com o consenso. Como consequência do trabalho realizado, foi alcançando altos índices de resoluções autocompositivas na Comarca de Amargosa, do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, motivo da menção honrosa atribuída ao magistrado pelo Conselho Nacional de Justiça [3].
A prática tornou-se conhecida pelo termo “direito sistêmico”, termo utilizado e definido pelo referido magistrado como “aplicação prática da ciência jurídica com um viés terapêutico – desde a etapa de elaboração das leis até a sua aplicação nos casos concretos” [4].
Todavia, para nós, refletir sistemicamete sobre o Direito é eleger o pensamento sistêmico como novo paradigma, na forma apresentada por Capra e Mattei, em seu livro Revolução Ecojurídica. Assim, em um novo olhar, o direito “tem presença viva e é uma expressão de nosso comportamento ético e social, formado pelas obrigações que temos uns para com os outros e para com os Commons” [5].
Certo é que a constelação familiar pode ser uma ferramenta resultante dessa nova visão de mundo, mas não deve ser considerada como um paradigma em si. Isso porque a ideologia da prática pode servir para a manutenção das relações humanas permeadas por “leis naturais” como a hierarquia, o equilíbrio e o pertencimento em sistemas sociais fechados, o que reforça questões centrais capitalistas, coloniais e patriarcais.
A grande descoberta de Hellinger reside em sua peculiar fenomenologia que desvela uma percepção sistêmica, não uma forma de psicoterapia. Na prática vivencial é possível reconhecer a relação entre as partes e o todo com múltiplas posições de percepção (ponto de vista do “eu”; do “outro”; do “observador”; do “nós”) [6]. Assim, o nosso campo relacional é criado por padrões de relacionamento humanos e interações que acontecem num determinado espaço.
Na constelação, alguém representa algo ou uma pessoa, “[entrando] em contato com um campo de informações que o fará comportar-se ou sentir-se como o representado. Este campo traz informações que mudam o comportamento humano o tempo todo” [7]. Dentre outras pesquisas, o biólogo inglês Rupert Sheldrake fala sobre “campos morfogenéticos” ao explicar como os cães sabem que seus donos estão chegando [8].
Os campos de informação fazem parte do cotidiano. Todos já passaram pela experiência de pensar em alguém e este alguém ligar. Ou alguém ligar e a pessoa atender e dizer que estava justamente pensando nela. Ninguém se espanta com um rádio ligado, com a música tocando ou o interlocutor informando notícias sobre o trânsito. Por quê? Porque todo mundo já sabe que passam milhares de ondas transportando informações.
Tal qual o rádio, captamos e transmitimos informações o tempo todo. Por isso que além do diálogo verbal, o diálogo que transcorre de forma oculta em nossas relações [9]. Então, constelação se dá neste campo de informações. E por meio da prática vivencial, podemos perceber nossas dinâmicas familiares ainda não vistas. Com olhar ampliado, aumentamos as chances de sair de nossos conflitos (existenciais, familiares) e de mudar comportamentos.
Esse olhar humano sobre o tratamento de conflito familiares expande a cada dia no Poder Judiciário. No Rio de Janeiro, a técnica foi objeto de um projeto-piloto em 2016. O projeto de constelação para autocomposição de conflitos do CEJUSC/Leopoldina do TJRJ apresentou a prática como uma abordagem humanizada no tratamento do conflito e como estímulo ao consenso alcançado por meio da mediação e conciliação.
Os resultados revelam um índice de 85% de “acordo”, como resultado dos processos dos quais seus integrantes passaram pela experiência da constelação familiar antes das audiências de conciliação, mediação ou audiências de instrução e julgamento. Os índices de “acordo” dos processos que seguiram o rito comum (sem constelação ou outra prática) apontam que 66% dos processos resultam em “acordo” e 34% em decisões judiciais [10].
Além disso, quase quatrocentas pessoas participaram da constelação prevista pelo projeto e cerca de 85% entenderam no que consistia a nova técnica e 90% das pessoas disseram que o apresentador foi objetivo em citar exemplos de como é sua aplicação na solução de conflitos familiares.
A abordagem no âmbito jurídico é um campo novo de atuação profissional. A constelação familiar, se desenvolvida com metodologia (de trabalho e de pesquisa) e praticada com a observação da laicidade estatal e dos direitos constitucionais fundamentais, configura um campo legítimo de trabalho, colocando-se à serviço das pessoas em uma nova estrutura de justiça, cuidadora e solidária.
É possível perceber que a constelação familiar está a serviço do desenvolvimento humano (como a conciliação e a mediação) na medida em que valoriza a vida, a autonomia, a autoestima, o bem-estar dos envolvidos em conflitos das mais diversas ordens, existenciais, familiares, sociais e profissionais.
O grande desafio de enxergar a constelação familiar como política pública para tratamento de conflitos é justamente a necessidade de se esclarecer profunda e amplamente seus propósitos alicerçados no pensamento sistêmico e nos direitos humanos bem como em investigações e pesquisas científicas.
NOTAS E REFERÊNCIAS
[1] DILTS, Robert; DELOZIER, Judith. Encyclipedia of Systemic Neuro-Linguist Programming and NPL New Coding. California: NLP University Press, 2000, p. 489.
[2] FRANKE, Ursula. Quando fecho os olhos vejo você: as constelações familiares no atendimento individual. Patos de Minas: Atman, 2006, p.12.
[3] STORCH, Sami. Premiação do CNJ destaca conciliações no TJBA e projeto de Constelações na Justiça na Comarca de Amargosa/BA. Disponível em: https://direitosistemico.wordpress.com/2015/07/02/premiacao-do-cnj-destaca-conciliacoes-no-tjba-e-projeto-de-constelacoes-na-justica-na-comarca-de-amargosaba/ Acesso em 18 de fevereiro de 2018.
[4] STORCH, Sami. O que é o direito sistêmico? Disponível em: https://direitosistemico.wordpress.com/2010/11/29/o-que-e-direito-sistemico/ Acesso em 18 de fevereiro de 2018.
[5] CAPRA, Fritjof; MATTEI, Ugo. A Revolução ecojurídica. O direito sistêmico em sintonia com a natureza e a comunidade. São Paulo: Cultrix, 2018, p. 257. Commons entendidos aqui como bens e recursos comuns, “reconhecidos como tais por uma comunidade que se envolve em sua administração e proteção, não apenas em seu próprio interesse, mas também no das gerações futuras”, p. 212.
[6] DILTS, Robert; DELOZIER, Judith. Encyclipedia of Systemic Neuro-Linguist Programming and NPL New Coding. California: NLP University Press, 2000, p. 407.
[7] BARBOSA, Ruth. O que é constelação sistêmica? In: Workshop de Constelação Sistêmica – Rio de Janeiro: Instituto de Educação do Ser (IES), 17 de abril de 2011.
[8] SHELDRAKE, Rupert. Os cães sabem quando seus donos estão chegando. São Paulo: Objetiva, 2003. A pesquisa apresenta casos do comportamento dos cães e os resultados encontrados por meio do entendimento de campos morfogenéticos, campos invisíveis de conexão entre os seres. Regiões de influência não materiais. Esse campo das formas abrange a organização dos sistemas biológicos (campos morfogenéticos), dos movimentos e ações de animais e humanos (campos comportamentais), dos comportamentos dos grupos sociais (campos sociais) e dos hábitos mentais (campos mentais). In: SHELDRAKE, Rupert. Uma nova ciência da vida: a hipótese da causação formativa e os problemas não resolvidos da biologia. São Paulo: Editora Cultrix, 2013.
[9] Virginia Satir em entrevista pede ao entrevistador para perguntá-la “como vai você?”. No que ela responde: “estou bem, Jeff”. Logo, pergunta ao entrevistador o que acontece com ele ao ouvir isso. Jeff diz perceber um tom frio e distante na resposta. Assim, a título de ilustração, Satir exemplifica que há dois diálogos acontecendo ali, o verbal e o inconsciente (oculto). In: SATIR, V. Entrevista sobre Comunicação e Congruência. Thinking Allowed Productions: 1986. Entrevista concedida a Jeffrey Mishlove. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=vfkWnQNWCRE. Acesso em 18 de fevereiro de 2018.
[10] FERREIRA, J. L. Resoluções consensuais de conflitos: Avaliação crítica das políticas judiciárias nacionais. 139 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
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