Apetite punitivista e princípio da insignificância

24/03/2017

Por Soraia da Rosa Mendes e Daniel Brandão – 24/03/2017

pretender ensinar, além de indicativo de uma soberba narcista, retrata uma docência idiota e completamente equivocada em suas concepções sobre o processo pedagógico. O professor que atribui a si mesmo as pretensões de ensinar supõe encontrar-se na posse de um presumido saber, completo e indiscutivelmente verdadeiro, transparente por si só, e isto, na melhor das hipóteses.[1]

Esta coluna é o resultado de uma redação em parceria. Um projeto antigo, que agora toma forma com o texto que segue subscrito conjuntamente por Daniel Brandão, estudante do quarto semestre em Direito do UniCeub, e que hoje comigo inaugura este espaço também como um lugar de partilha entre pessoas que só no ambiente físico estão em diferentes lados da sala de aula.

O caso que tratamos envolve o recente julgamento do habeas corpus 137.290 pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, no qual uma mulher foi denunciada, em Minas Gerais, pela prática do crime de furto tentado (artigo 155, combinado com artigo 14, do Código Penal), por tentar subtrair dois frascos de desodorante e cinco embalagens de goma de mascar de um estabelecimento comercial.

Tanto o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, quanto o Superior Tribunal de Justiça – STJ, negaram o pedido de aplicação do princípio da insignificância ao caso que, em seu montante, totalizou R$ 42,00 de prejuízo. Por tal razão, a Defensoria Pública da União impetrou o HC em favor da ré junto ao Supremo.

Nos termos do Habeas Corpus impetrado pela DPU, a conduta infratora não teria gerado considerável redução patrimonial da vítima (o supermercado), sendo inexpressivo o valor econômico dos produtos. Além disso, também alegou que os itens foram restituídos quando efetuado o flagrante da tentativa de furto, inexistindo também periculosidade social na ação delitiva.

Embora o resultado final do julgamento pela Segunda Turma do STF tenha sido favorável ao reconhecimento da bagatela no caso em concreto (diga-se, contudo, supreendentemente por apertada maioria, visto precedentes da própria Corte em casos semelhantes[2]), é sempre fundamental, considerando os julgados que o antecederam tanto no tribunal de origem, quanto no STJ, lembrar que em uma República Democrática de Direito, fundada e sustentada no pilar do princípio da dignidade da pessoa humana, a ira do Estado deve dobrar os joelhos a direitos mais relevantes que sua – às vezes indistinta – pretensão punitiva.

Como lembra Muñoz Conde, o poder punitivo do Estado deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima. Ou seja, segundo o autor, que “o Direito Penal somente deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes. As perturbações mais leves do ordenamento jurídico são objeto de outros ramos do Direito.”[3]

O princípio da intervenção mínima determina, portanto, a limitação ao poder punitivo do Estado quanto ao uso do Direito Penal. E, por ser ele a mais violenta das alternativas às quais o Estado pode recorrer para proteger bens jurídicos e sancionar quem contra aqueles atente, é preciso prudência seja ao criar tipos penais, seja ao apresentar a resposta penal que será imposta à pessoa circunstancialmente apresentada como infratora.[4]

O princípio da insignificância, por sua vez, opera no sentido de afastar a chamada tipicidade material do fato, sob o entendimento de que o legislador, quando prescreve um tipo penal, não o faz com intenção de se referir a todo e qualquer resultado lesivo a que alguém tenha dado causa, mas somente àqueles que acarretem prejuízos relevantes para a ordem jurídica e social (que possuam tipicidade material).

Ora, no caso em debate no Supremo, teria o Estado interesse – real e juridicamente fundamentado – em punir penalmente uma mulher, por ter tentado furtar dois desodorantes e cinco tabletes de chiclete de um supermercado?

A resposta razoável é, seguramente, não. É desarrazoado, desproporcional e um acinte à dignidade da pessoa humana, que, em um Estado de Direito, sejam sentenciados duramente crimes menos graves, para os quais outras alternativas seriam possíveis. Crimes que, usualmente reprimidos com a pena privativa de liberdade, por sinal, são responsáveis por significativa parcela das pessoas jogadas nos cárceres brasileiros.

No julgamento o Ministro Relator, Ricardo Lewandowski, votou pelo não provimento ao HC, por entender que o contexto revelava que a acusada era, em suas palavras, “pessoa que está habituada ao crime” (grifo nosso). Segundo ele, o fato da paciente responder por – supostos – delitos cometidos anteriormente ao furto tentado que respondia seria demonstrativo de uma reiterada conduta criminosa, daí porque, embora o caso apontasse os contornos da insignificância, à ré não caberia conceder a ordem.

Lewandowski teve seu voto vencido, sendo seguido apenas pelo Ministro Edson Fachin. E, como dissemos acima, o resultado final (em apertada maioria) foi pelo provimento do recurso.

Contudo, ficamos nós, aqui, a nos perguntarmos: E se o voto do relator fosse seguido pela maioria e, futuramente, a prejudicada fosse absolvida nos processos penais pelos quais responde? Quem compensaria esse custo da injustiça[5] para a vida da acusada? Qual a aplicabilidade da insignificância em um contexto em que o direito penal do fato cede ao do autor?

Não conceder a liberdade por uma conduta abstratamente definida como “habituada ao crime” coloca a autora no centro de discussão do sentido da penalização, em flagrante (embora, infelizmente, corriqueira) subversão do direito penal assentado no fato, e em xeque o princípio da presunção da inocência, deixando sempre abertas as portas para um estado punitivista que parece estar sempre no cio.

De fato, para além da afirmação do princípio da insignificância, temos muito o que pensar a partir deste julgado. Principalmente a de que é sempre preciso relembrar, inclusive aos tribunais superiores, a máxima segundo a qual é melhor deixar solto um culpado a prender um inocente, na tentativa de limitarmos o apetite punitivista.


Notas e Referências:

[1] WARAT, Luiz Alberto. Sobre a Impossibilidade de Ensinar Direito: notas para a desescolarização do Direito. In: Epistemologia e Ensino do Direito: o sonho acabou. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004.

[2] Vide HC 123.108/MG; HC 123.734/MG; HC 123.533/SP; dentre outros.

[3] MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción al Derecho Penal. Barcelona: Bosch, 1975.

[4] ROBERTI, Maura. A Intervenção Mínima como Princípio no Direito Penal Brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2001.

[5] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: RT, 2006.


Soraia da Rosa Mendes. Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e pós-doutoranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. .


Daniel Brandão. . Daniel Brandão é estudante do quarto semestre do Curso de Direito do Centro de Ensino Unificado de Brasília, UniCeub. . .


Imagem Ilustrativa do Post: Grocery trolley. // Foto de: Polycart // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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