Expiação: um alívio quando alguém consegue expiar-se de suas faltas, crimes, culpas. A sociedade ocidental tem uma narrativa estranha: declara-se culpada e vive conforme dada pauta salvadora para uma “vida eterna”. Na nossa tradição, nasce-se culpado por um pecado original de uma mulher chamada Eva, a qual, com a minha admiração, comeu da árvore do conhecimento. Sendo mulher e conhecendo, foi danada.
Adão, o babaca do marido dela, declarou-se enganado e fundou a ordem machista, controlando sobretudo a mulher que sabe ou quer saber. Conhecimento, logo, independência, para a mulher, desde que “deus” mandou Eva parir com dor, é algo interditado. Mesmo o mundo capitalista, que é, aliás, o primeiro modo de produção a aceitar o conhecimento da mulher, o faz com restrições e assimetria.
A nossa tradição cristã anda por aí arrastando-se em cultural constituição de culpa, querendo purificar-se da profanação do Éden. Temos necessidade moral de catarses. Talvez por isso, mais ainda num país socialmente injusto, cultivemos atos rituais que promovam medo, raiva, gosto de vingança. Eles nos aplacam a consciência culpada por injustiças reais e por conformidades de religião.
Tento imaginar um sujeito em plena Idade Média sendo conduzido pelas ruas de uma pequena cidade depois de passar pelos porões da Santa Inquisição. Foi massacrado até o limiar da morte, só se o tendo mantido vivo para a cerimônia de exposição à massa odienta, aos bons cristãos: xingamentos, cusparadas, objetos arremessados. Então a fogueira dos assassinos fazia a todos libertos das suas inculpações.
“Só é licito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receito de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”
Esse é o texto da Súmula Vinculante 11, da lavra do Supremo Tribunal Federal. Assunto resolvido? Sim e não. Formalmente, sim. Na prática forense, de jeito nenhum. Fundado nela, “o ministro Marco Aurélio anulou todos os atos processuais ocorridos após a audiência de apresentação de um adolescente que permaneceu algemado durante a sessão sem que houvesse qualquer fundamentação”.
O Conjur publicou matéria com as informações no Facebook (http://migre.me/rlMDu). Em inúmeros comentários (com luminosas exceções) o ministro e o Supremo foram execrados, o menor foi execrado, os menores “de rua” foram execrados, os juristas brasileiros foram execrados, a legislação brasileira foi execrada, o Brasil foi execrado. Essa “galera” facebookeana é a herdeira intelectual do medievo.
Os tantos comentaristas furibundos podem ser abreviados numa das afirmações que lá constam: “Se está diante do Estado é porque deve”. Conforme essa mentalidade que se supõe capaz de fazer Justiça com sentença sumária, basta uma hipótese para que alguém seja havido por culpado. Ora, se há, no caso, um crime flagrante e flagrado, é o cometido pelo Estado, quer dizer, cometido pelo juiz.
Está explícito na súmula que o uso da algema deve ser justificado por escrito, “sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente”. O agente foi o juiz. Se o ministro Marco Aurélio errou, portanto, foi por não determinar se procedessem com as medidas legais aplicáveis. O artigo citado informa que o magistrado referido era useiro da ilegalidade. Para ele, contudo, a “galera” não pediu punição.
Por que a intolerante grita geral contra o menor algemado? Por que tão poucos, ainda que bem, defenderam a franquia republicana da presunção de inocência? É que o punitivismo raivoso do juiz é expiador de culpa. Há medo e ódio do “de menor” produzido pela nossa injusta sociedade. A sua humilhação é catártica: posto que sofreu castigo, é culpado; eu me absolvo e estou vingado.
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