Abolicionismos e Anarquismos: potências, dissidências e resistências. Complexidades para além das leis e da Prisão-Prédio – Por Guilherme Moreira Pires

30/09/2015

"A prisão é uma política. Quando se fala de prisão ou de suas implicações, como a tortura, sempre se tem em mente um grande sistema, uma máquina gigantesca cheia de tentáculos. De fato, a prisão é uma máquina de moer carne humana, é um depósito de pessoas-lixo, um triturador de corpos, corações e mentes - um aniquilador de existências. Mas ela começou bem antes; antes, ela existe como princípio moral e prática ordinária, para depois ser um prédio. É nesse sentido que a prisão é uma política. E desta maneira, não se enfrenta o problema das prisões olhando apenas para seus prédios e para as leis que a regulam."

AUGUSTO, 2013, p. 15.

Se nossa história não tem sido boa, é mais motivo para não nos vincularmos aos dejetos sedimentados (im)postos, apresentados como única realidade possível e faceta inescapável de mundo.

Os numerosos tentáculos atrelados aos fluxos e influxos do sistema penal capturam e destoam as singularidades, concretudes e complexidades da vida; encapsulam-nas, permutando-as por categorias, interações e replicações fictícias, sujeitos e desejos universais, reações pré-estabelecidas iguais para uma infinidade de situações absolutamente distintas.

Sequestro das situações problemáticas, das partes envolvidas, do tempo, espaço, linguagem, regras do jogo. Supressão de potencialidades libertárias e outras possibilidades alheias aos referenciais programacionais dos tentáculos que retilineamente reagem acerca da complexidade do mundo.

Sobre tais artificialidades insanamente destrutivas e reducionistas com implicações sobremaneira reais, leia aqui: http://emporiododireito.com.br/poder-punitivo-e-direito-penal-sequestro-do-conflito-do-tempo-e-do-ser-por-guilherme-moreira-pires.

As capturas são tão espalhafatosas que se tornam sutis, sensibilidades e profundidades dilaceradas pelo ruído dos movimentos circulares e tautológicos do controle. Movimentos e velocidades contrastantes se cruzam para maximizar o ensurdecimento.

Enquanto a captura da linguagem confisca das pessoas potência e criticidade, o sequestro dos trilhos do tempo lhes confisca da própria vida: esse somatório de elementos sequestrados dialogam entre si, também se cruzam, tocam e perpassam; é impossível entender a dinâmica do poder punitivo sem entender como operam os sequestros perpetrados pelos fluxos desse mesmo poder, nunca unívocos, que brincam com a finitude de nossas existências, sacrificialmente capturando-as, devorando-as, encarcerando-as.

Para se pensar além dessa "caixa", outras linguagens são demandadas, e não podemos negligenciar isso; cabe-nos construir linguagens descongeladoras dos trilhos do tempo e da vida daqueles sugados nesse triturador de carne (no Brasil, carne sobretudo da juventude pobre e negra); cabe-nos desvelar todo o estupor das reentrantes artificialidades mortíferas que nos regem, estéreis para os fins que tantos acreditam, restando a retribuição rasteira, multiplicadora de danos, dores e sofrimentos, ativadora de barbáries, massacres que se somam e ampliam a pilha de cadáveres, moldando montanhas de mortos.

Surdos pela sutileza dos ruídos espalhafatosos, já não captamos tão bem as palavras ensanguentadas dos mortos, que nos falam com tanta eloquência. Muitos não captam mais nada. Não podemos construir novos mundos sem novas linguagens. O sistema penal não está na oposição dos massacres, senão que lhes representa, materializando em suas operacionalidades reais o conteúdo programacional do poder punitivo, tão distante da promessa constitucional.

"Quando usamos outra linguagem, ensinamos esta linguagem a outras pessoas. Nós as convidamos, de uma certa maneira, para também abolirem a justiça criminal." (HULSMAN, 2003, p. 213).

Desafortunadamente, certas linguagens nos ensinam a ver beleza nesses dejetos; nos ensinam mesmo a gostar, demandar e aplaudir o sofrimento de seres humanos. Essa é a linguagem que aprendemos; fomos nela adestrados e como regra a reproduzimos, atuando dentro de seus lindes e escassas possibilidades. Sejamos resistências (não estáticas, mas resistências-movimento). Assim, conforme Hulsman e Warat, precisamos de novas linguagens libertadoras das velhas linguagens, para efetivamente pensarmos com a complexidade que nos exigem as singularidades e multiplicidades da vida, para além dos tentáculos totalizantes, colonizadores e confiscadores de potencialidades e sociabilidades, bem como de todos os elementos aludidos (dentre outros possíveis).

"O que leva uma pessoa a ser presa? Como alguém é encerrado em uma prisão? Como um evento trágico, uma situação-problema, se transforma, em um átimo de tempo, em matéria a ser malhada em tribunais – após ter passado pelas mãos de policiais, técnicos em humanidades e solidários agentes de ONGs? Quais os itinerários traçados para que uma situação inédita ou desestabilizadora, ou mesmo uma ação violenta, seja codificada como crime e encaminhada procedimentalmente para uma solução que implica a punição, uma pena a ser cumprida no interior da prisão-prédio, que nas últimas décadas se desdobra numa série de programas que combinam reclusão e controle a céu aberto? Essa equação moderna quase natural da relação crime-punição é possível porque há uma educação, desde a criança, que prepara as pessoas para responder, obedientemente, aos eventos trágicos da existência com punições e recompensas, por dentro e por fora do sistema penal." (AUGUSTO, 2012, p. 154).

Cumpre (des)construir linguagens, mundos e sistemas, externos e internos, se conhecer melhor, (re)pensar interações e relações com todas as pessoas, mesmo as de afeto e amor.

Ativar complexidades. Sermos complexidade. Vivermos complexidades.

Ainda que muitos desejem, inexiste o controle pleno, controle total. Figuram-se resistências, ainda que em potencial. Fissuras e rotas de fuga. Zonas em que uma mínima abertura é vislumbrada. Brechas construídas. Fluxos antagônicos. Resistências não apenas estáticas, mas resistências-movimento. Imaginação, muita. Oposição enérgica. Potência libertária. Desobediência. Sem complacência, respiram os cultivadores de uma dissidência vívida, aqueles que valorizam a complexidade do mundo e das muitas vidas que finitamente por ele passam, como nômades.

Não identifico abolicionismos como coisa de doutores, ou mesmo uma temática asfixiada marcada prioritariamente por um recorte doutrinário, jurídico, de política criminal, metodológico ou científico; não que isso seja irrelevante (e não é!), mas jamais visualizaria abolicionismos confinados e lidos com um fascínio por alguma dessas palavras, comportando em si supressão de profundidades, capturadora (e não ativadora) de complexidades múltiplas e potentes.

Potência inclusive das juventudes, das crianças, que representam fissuras nos mundos caducos instituídos, aqueles que os adultos validam, ensinam, impõe, sobre e para o qual disciplinam e adestram as vidas livres e espontâneas das crianças, então achatadas em padrões que não são seus, mas que gradativamente vão se tornando.

Felizmente, as crianças também exercem e são resistências.

Mas, em que pese essa constatação, o controle é tamanho, que as resistências vão sendo gradativamente engolidas e sobrepujadas pelos mundos caducos incutidos. Potências e vidas livres suprimidas, dilaceradas, obliteradas, rasgadas e apagadas. Transformadas. Metamorfoses várias. Sequestro das crianças livres, de energia contagiante e vívida, sublime e mágica. Sequestro da vida, do tempo, do ser, agrilhoados entre confiscos terríveis.

A sociedade se move no sentido da supressão das fissuras com potencial emancipatório, e, adivinhe(m), as crianças representam esse potencial. As crianças, não a ciência. Esses filhotes não adestrados são temidos, comportam em si mudanças e transformações indesejáveis, detentoras de um potencial capaz de rasgar os limites instituídos. Domar esses jovens, essas fendas em potencial, é incumbência dos representantes do velho, a serviço dos interesses, programações e mundos caducos que pretendem preservar; referenciais e mundos insanos.

"A criança diante dos especialistas escancara a decisiva presença do imprevisto. Ela é uma potência de liberdade assustadora; é a imagem que mete medo em cada autoridade escolar, antes de qualquer coisa pela capacidade em reavivar na memória a tristeza da liberdade e da espontaneidade perdidas [...]" (PASSETTI, AUGUSTO, 2008, p. 25).

Frise-se: conter essa potência é serviço dos velhos e da própria sociedade, e são eles que temem a existência de crianças e jovens livres, capazes de destronar as arbitrariedades, abalar sistemas, instituições, imaginários, significações, sentidos e mundos estabelecidos, sedimentados, e sem adaptações, inserções, complacências e reproduções, com muita imaginação, resistência e movimento.

Resistência-movimento, imaginação-resistência. Essa juventude e potência pode varrer mesmo os resquícios mais remotos das ruínas dos mundos caducos, pode destronar seus deuses; é temida pelos abalos que pode ocasionar se não for contida, se esses filhotes audazes não forem adestrados, brutalmente disciplinados, controlados de alguma forma; eis que não só carregam novos mundos novos em si, como são novos mundos.

A sociedade teme esses jovens, teme seus potenciais e possibilidades que carregam consigo. Treme de medo das incertezas e complexidades da vida. Teme o contato humano, se amedronta com o outro. Se relaciona a partir de muros, e pensa a partir de muros, também tornando-se muro. Não desejo novos muros, senão que novos caminhos.

Enquanto existirem crianças, ainda existirão potencialidades transformadoras.

Enquanto existirem adultos-crianças, que não se esqueceram de tudo isso, essa potência não se perderá.

Esse é o poder das crianças e jovens.

Eles não são apenas o futuro. São o presente.

Desconstroem mundos senis, trazendo consigo mundos gentis.

“As pontes para a vida estão quase todas cortadas. Restam poucas passagens, escasseiam-se os passaportes. Espera-se, em vão, uma coleta. A viagem para a emancipação é difícil: agonia ao extremo. Temos de estar preparados para poder descobrir os acessos que foram muito bem dissimulados para que os olhemos, sem vê-los. Corremos o risco de ver passar o último trem sem nos darmos conta.” (WARAT, 1997, p. 220).


Notas e Referências:

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