ABDPro #4 - Métodos consensuais de solução de conflitos e precedentes – diálogo necessário - Por Marcelo Pereira de Almeida

25/10/2017

1.                Introdução 

Neste ensaio, pretende-se traçar algumas notas sobre dois temas que formam, a nosso sentir, as principais bases metodológicas utilizadas pelo legislador do Código de Processo Civil atual.

O texto objetiva discutir os problemas gerados pela opção de se implantar um modelo vinculativo de pronunciamentos judiciais, denominados de precedentes[1], com o discurso de justificação que aponta para a necessidade de se proporcionar no âmbito jurisdicional confiança, segurança e isonomia, sem que se diminua a intensa judicialização dos conflitos, apesar do legislador ter optado, em suas bases, pelo incentivo ao emprego de métodos consensuais para a solução das controvérsias.

No intuito de alcançar o objetivo proposto, o texto se divide em quatro partes. A primeira destina-se a indicar, em linhas gerais, os principais alicerces metodológicos que o legislador se apoiou para construir o CPC de 2015. Na segunda seção, abordam-se aspectos sobre os sinais existentes na legislação que indicam o incentivo ao emprego de métodos consensuais de solução de conflitos. No terceiro momento, são traçadas algumas notas sobre o denominado sistema de precedentes e, em seguida, no quarto momento, são apresentadas algumas inferências que apontam para o necessário diálogo entre esses dois seguimentos. 

2.                  As bases metodológicas do CPC/2015 

O movimento para a criação de um Novo Código de Processo Civil foi incentivado, sobretudo, pelos vários fatores identificados como àqueles que proporcionam o afastamento do jurisdicionado ao acesso da tutela pretendida, principalmente, a morosidade, ineficiência e a falta de instrumentos capazes de possibilitar confiança e uniformidade no tratamento das causas, potencializados pelo número cada vez mais crescente de processos que tramitam nas várias esferas do Poder Judiciário e que as inúmeras reformas efetivadas na legislação processual nas últimas décadas não conseguiram dar respostas satisfatórias.

Diante desses aspectos, o Código de Processo Civil de 2015 estruturou-se com vetores que fossem capazes de atingir com precisão esses problemas e, para tanto, algumas apostas foram feitas. Dentre essas apostas, podem ser destacadas as normas que visam incentivar o emprego de métodos consensuais de solução de controvérsias, principalmente a conciliação e mediação e, todo o instrumental voltado a padronizar o tratamento das causas, que se convencionou denominar de “modelo de precedentes” ou “microssistema de precedentes judiciais”.[2] 

3.                  O fomento aos métodos consensuais 

No Brasil, predominantemente, os conflitos que surgem nos vários seguimentos da sociedade são direcionados ao Poder Judiciário, o que foi acentuado pelo advento da Constituição de 1988, que alçou o Poder Judiciário como guardião dos direitos fundamentais, potencializando o acesso à justiça por intermédio de vários incentivos, tais como o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional.

Diante deste quadro, a demanda reprimida que existia no âmbito da sociedade brasileira, fez com que o volume de processos judiciais aumentasse drasticamente, como pode ser constatado nos números disponíveis no site do Conselho Nacional de Justiça.

A ampliação significativa do número de processos chama a atenção de todos os seguimentos do sistema de justiça que buscam encontrar caminhos que possam racionalizar o tratamento da massificação das causas, elaborando e implementando políticas de gestão judiciária.

Seguindo os ventos, mesmo que tardiamente, do “movimento de acesso à justiça”, cujo ápice foi o denominado “Projeto Florença”, realizado na década de 1970, na Universidade de Florença na Itália, algumas políticas de incentivo a desjudicialização, vem sendo adotadas no Brasil no intuito de se instituir uma cultura de consenso na solução de controvérsias, visando aparentemente, a diminuição da tensão no seguimento jurisdicional, com a criação de ambientes considerados mais adequados para a acomodação das controvérsias.

Nessa linha, o Conselho Nacional de Justiça editou no ano de 2010 a Resolução 125, que objetivou instituir uma política nacional de solução adequada de conflitos por meio de métodos consensuais, dispondo sobre a criação de núcleos de conciliação e mediação nos vários ambientes jurisdicionais.

Posteriormente, a Lei nº 13.105/15, que instituiu o Código de Processo Civil e a Lei nº 13.140/15, denominada Lei de Mediação, fortaleceram essa política, dispondo sobre toda a principiologia que norteia esses métodos, indicando a necessidade de criar espaços adequados para esse fim e, trançando indicativos par a atuação dos conciliadores e mediadores.

O objetivo de se implantar uma política de fortalecimento desses métodos é muito visível nas diretrizes do CPC de 2015, ao dispor nas normas fundamentais a exortação de todos os atores do sistema de justiça para que incentivem constantemente o emprego dos métodos consensuais. A postura do legislador chegou a ser contundente, ao colocar na rota do procedimento comum uma audiência para se realizar mediação e conciliação de forma incidental, antes mesmo do demandado apresentar defesa e, nos casos dos conflitos de família, a realização dessa audiência é obrigatória.

O intento do legislador do CPC de se implementar uma política destinada a racionalizar os conflitos com o emprego de métodos consensuais, chegou ao ponto de considerar ato atentatório à dignidade da justiça a falta injustificada na audiência de conciliação ou mediação designada no curso do processo, o que nos parece atentar contra o princípio da autonomia da vontade, um dos pilares dessa metodologia.

Pareceu, com essa postura, que legislador brasileiro buscou implantar uma cultura, que para ser sedimentada, necessita de longo percurso de amadurecimento, pois a cultura de um povo não se altera com imposições legislativas. Até porque, o perfil da sociedade brasileira, em relação ao tratamento dos conflitos, por vários aspectos históricos, estava sedimentado na judicialização. Não parece crível, o legislador querer, a curto prazo impor uma mudança nesse perfil cultural.   

4.                  O denominado modelo de precedentes 

Outra aposta do legislador do CPC de 2015 foi a implementação de um instrumental destinado a provocar a observância obrigatória de pronunciamentos judiciais editados em circunstâncias específicas, o denominado modelo de precedentes judiciais, com a justificativa de que a atividade jurisdicional deve proporcionar resultados que privilegiem a isonomia, a confiança e a segurança jurídica.

A falta de uniformidade no tratamento das causas perante o sistema de justiça é um problema que sempre preocupou os profissionais que atuam nesse seguimento, o que gerou algumas posturas para tentar amenizar esses males. Neste contexto, pode-se destacar a criação da Súmula do STF por iniciativa do Ministro Vitor Nunes Leal, ainda na década de 1960, o fortalecimento dos poderes do relator em caso de recursos com tese contrária a jurisprudência dominante de tribunal, por intermédio das Leis 8.038/90, 9.139/95 e 9.756/98. Porém, só após a promulgação da Emenda Constitucional nº 45/04, foi possível perceber um intento mais incisivo do legislador para se buscar a observância obrigatória de pronunciamentos judiciais com a criação da súmula com efeito vinculante oriunda de julgamentos perante o STF, a repercussão geral em recursos extraordinário e o processamento de recursos repetitivos, pelas Leis nº 11.418/06 e 11.672/08. O CPC de 2015 foi mais contundente nessa proposta.

Não há dúvida que os órgãos judicantes de um país devem manter seus entendimentos uniformes, estáveis, íntegros e coerentes, conforme sinaliza o artigo 926 do CPC/2015, mas há de se pensar a forma como esse objetivo será alcançado e, nessas breves reflexões, optou-se por não se enfrentar os aspectos concernentes a duvidosa constitucionalidade deste sistema.

No CPC de 2015 o principal indicativo para levar a compreensão da escolha do legislador por uma verticalização de pronunciamentos judiciais, está no artigo 927, que dispõe sobre a necessidade dos órgãos do Poder Judiciário observarem os “padrões decisórios”[3] lá elencados.

A leitura isolada do artigo 927 e incisos não permite uma compreensão segura sobre esse intento do legislador, ainda mais se for levado em consideração que o sistema jurídico brasileiro é de matriz romano-germânica que, como se sabe, tem suas bases na norma editada por órgão de representação, tendo a jurisprudência conotação apenas persuasiva. Porém, ao analisar todo instrumental que serve de apoio a esses dispositivos permite-se constatar que, efetivamente, o objetivo é instituir a força obrigatória dos pronunciamentos elencados neste artigo.  

O comando constante no artigo 332 do CPC, que trata das hipóteses que determinam a postura do julgador de proferir sentença liminar ao se deparar com petições iniciais que veiculam teses contrárias aos pronunciamentos elencados no artigo 927 do mesmo diploma é o primeiro sinal. O dispositivo indica que o juiz deverá julgar liminarmente improcedente os pedidos contrários aos “precedentes” indicados no artigo 927 do CPC. Caso o autor se sinta prejudicado e queira conduzir a discussão ao tribunal por intermédio do recurso de apelação, o relator do recurso deverá adotar a postura de se negar provimento, monocraticamente, conforme estabelece o artigo 932, IV do CPC.

Disposições que exigem posturas semelhantes podem ser encontradas no artigo 311 do CPC que tratam da tutela de evidência, nos casos em que a prova documental é considerada suficiente e o pedido estiver escorado em pronunciamentos previstos no artigo 927 do CPC.

Além dessas incisivas disposições, o legislador do CPC de 2015 criou instrumentos destinados a gerar esses pronunciamentos de força obrigatória, que além dessa finalidade, ainda proporcionam a resolução de causas consideradas repetitivas. Isso significa dizer que o precedente gerado por intermédio dos mecanismos de solução de causas repetitivas, resolve casos pendentes e futuros, se apresentando como um poderoso instrumental de gestão judiciária, de sorte a se alcançar um dos objetivos do movimento reformista de proporcionar eficiência na atividade jurisdicional.

Verifica-se, assim, que o sistema de “precedentes obrigatórios” implantado pelo CPC de 2015 se afasta de maneira muito clara do modelo de precedentes dos países de matriz common law, por várias razões. Uma dessas razões que chama a atenção, diz respeito ao fato de que no sistema brasileiro o precedente nasce como precedente e não naturalmente pela sua aplicação se torna um precedente.

Outro ponto relevante nessa discussão, se refere a forma de aplicação do “precedente obrigatório” do sistema previsto no CPC de 2015 que afeta toda a atividade jurisdicional.

Para se enxergar uma possível aproximação desse sistema ao devido processo legal, o julgador deverá observar, invariavelmente, os elementos que permitem amenizar o déficit de legitimação que este sistema carrega. Primeiramente deve submeter a questão ao contraditório valorizado e, em segundo lugar, fundamentar de forma analítica a decisão judicial que foi escorada no precedente de força obrigatória, na forma do artigo 489, § 1º do CPC. 

A valoração do contraditório deve ser ainda mais intensa nos procedimentos destinados a gerar precedentes com esse perfil e solucionar causas seriais, em virtude da potencialidade de afetar interessados que não terão oportunidade de participar da construção deste precedente.

Apesar do legislador projetar instrumentos que objetivam valorizar essa participação como a intervenção de amicus curiae e possibilidade de realização de audiências públicas, pode se perceber que a efetividade destes expedientes é muito incipiente e acabam não passando de mera retórica.[4]

Se é possível enxergar legitimidade no plano constitucional na aplicação dessa metodologia, parece claro que o preço a ser pago é a observância invariável do contraditório valorizado e a fundamentação analítica das decisões judiciais. 

5.                  Algumas inferências sobre o necessário diálogo dos sistemas de emprego de métodos consensuais e o de precedentes obrigatórios 

A lógica do sistema de precedentes pressupõe uma litigiosidade menos intensa nos processos judiciais de sorte a permitir que o julgador possa avaliar os elementos que compõem a ratio decidendi, aplicando-os no caso posto. Essa atividade implica uma intensidade cognitiva que exige uma valoração de suportes fáticos e jurídicos de aproximação e exclusão, incompatíveis com um volume muito acentuado de processos, como ocorre no sistema de justiça brasileiro.

Essa menor intensidade de casos que exigem um pronunciamento judicial substitutivo, característico dos países de matriz common law, é resultado, ao menos em parte, da cultura arraigada do emprego de métodos consensuais antes e no curso do processo, conforme apontado por Michelle Taruffo, ao afirmar que no sistema norte americano entre 90% a 98% dos casos judicializados são resolvidos na fase de pre-trial, com um acordo, o que significa dizer que os julgamentos propriamente ditos, ficam na faixa aproximada de menos 5%[5]. Com essa constatação, pode-se inferir que o julgador tem condições de aplicar adequadamente o precedente, valorando todos os elementos que compõem a ratio decidendi e as características do caso posto.

É possível constatar, com essas premissas, que o modelo brasileiro, embora tenha se estruturado nesses dois pilares, parece estar divorciado da lógica que foi sedimentada durante séculos na formação da cultura dos países que adotam esse modelo, uma vez que foram implantados num mesmo momento sem a devida compatibilização.

Nos parece que o legislador deveria ter estabelecido regras de transição que permitissem, primeiramente a incorporação e sedimentação de uma cultura de utilização de métodos consensuais para diminuir a tensão do volume de processos no âmbito jurisdicional, para que, uma vez constatada essa diminuição, fosse possível implantar uma metodologia de precedentes obrigatórios.

A implantação de métodos de precedentes obrigatórios sem a valorização da participação dos interessados e a resistência em se fundamentar adequadamente as decisões que formarão o precedente, somados a ausência de uma política eficaz de desjudicialização com o emprego de instrumentos que visam racionalizar os litígios pelo consenso, tende a gerar a otimização que alcança objetivos meramente estatísticos.

A lógica dos precedentes sem a devida diminuição da tensão gerada pelo volume excessivo de processos conduz a restrições de acesso que não se legitima diante modelo constitucional de tutela dos direitos.

Essas breves ponderações servem apenas de disparador para que possamos refletir sobre o sistema de tutela dos direitos que está sendo desenhado sob a vigência do CPC de 2015, que se mal lido pode se transformar em o sistema autoritário e opressor. 

6.                  Referências 

ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Precedentes Judiciais – Análise crítica dos métodos empregados no Brasil para a solução de demandas de massa. Curitiba: Juruá, 2014.

________________________. A influência do neoliberalismo no movimento de reformas processuais direcionadas à otimização de processos repetitivos. Rio de Janeiro. Juris Poiesis, ano 17, n. 17, jan. -dez. 2014.

BAHIA, Alexandre; NUNES, Dierle. Tendências de padronização decisória no PLS nº 166/10: o Brasil entre o civil law e common law e os problemas na utilização do “marco zero interpretativo”. In: BARROS, Flaviane de Magalhães; BOLZAN DE MORAIS, José Luis (coord.) Reforma do processo civil; perspectivas constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2010.

GRECO, Leonardo. Novas perspectivas da efetividade e do garantismo processual. In: MITIDIERO, Daniel; AMARAL, Guilherme Rizzo. (coord.); FEIJÓ, Maria Angélica Echer Ferreira (org.). Processo Civil: Estudos em homenagem ao Professor Doutor Calos Alberto Alvaro de Oliveira. São Paulo: Atlas, 2012

NUNES, Dierle José Coelho. Processo Jurisdicional Democrático: Uma análise crítica das reformas processuais. Curitiba: Juruá. 2011.

TARUFFO, Michele. Observações sobre os modelos processuais de civil law e de common law. Revista de Processo. nº 110. Ano 28. abr/jun. 2003. p. 140-158.


[1] O termo precedente tem vários conceitos e alcances, mas parece que o legislador o empregou de forma muito ampla e atécnica, ao considerar também verbetes sumulares como precedentes. Por este motivo, em alguns momentos optamos por utilizar a expressão “pronunciamento judicial.

[2] ALMEIDA, Marcelo Pereira de. A influência do neoliberalismo no movimento de reformas processuais direcionadas à otimização de processos repetitivos. Rio de Janeiro. Juris Poiesis, ano 17, n. 17, jan. -dez. 2014.

[3] BAHIA, Alexandre; NUNES, Dierle. Tendências de padronização decisória no PLS nº 166/10: o Brasil entre o civil law e common law e os problemas na utilização do “marco zero interpretativo”. In: BARROS, Flaviane de Magalhães; BOLZAN DE MORAIS, José Luis (coord.) Reforma do processo civil; perspectivas constitucionais. Belo Horizonte: Fórum, 2010. 

[4] Já tivemos oportunidade de constatar a pouca efetividade destes institutos em pesquisas realizadas em tribunais brasileiros cujos dados constam em ALMEIDA, Marcelo Pereira de. Precedentes Judiciais – Análise crítica dos métodos empregados no Brasil para a solução de demandas de massa. Curitiba: Juruá, 2014.

[5] TARUFFO, Michele. Observações sobre os modelos processuais de civil law e de common law. Revista de Processo. nº 110. Ano 28. abr/jun. 2003. p. 140-158.

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