A responsabilidade civil por situações de confiança na teoria da aparência jurídica – Por Mauricio Mota

23/11/2016

Na contemporaneidade assume relevo a proteção da aparência de direito. A velocidade das transações e o evolver frenético das relações jurídicas contemporâneas não permite sempre distinguir a aparência da realidade. E também não seria factível impor sempre tal encargo ao homem moderno como era a regra para os indivíduos no século XIX (cada um deve acautelar-se sobre todos os aspectos de suas relações jurídicas).  Na sociedade contemporânea a aparência instala-se no mundo. A imagem ganha estatuto de real; quer dizer, ela passa a ter uma realidade própria, mais tangível que o objeto real do qual é cópia. Camadas indefinidas de realidades se interpõem na prática feérica dos negócios sem que os partícipes que os vivem possam averiguar o tempo todo qual delas é a verdadeira.

A quase esquizofrenia em que vivemos, passeando por entre mundos concretos que, no entanto, podem ser enganadores, por entre relações jurídicas que oferecem uma miríade de possibilidades, num mundo em que diversos sentidos de real se inscrevem a cada momento, tudo isso traz para o direito uma nova responsabilidade. Dar a essa realidade multifacetada uma segurança, garantir efeitos jurídicos concretos a situações que só existiam em aparência, em tutela daqueles que confiaram verazmente na existência delas. É preciso se jogar no olho do furacão. Essa é a história da tutela legal da aparência jurídica.

Angelo Falzea define a aparência de direito como “a situação de fato que manifesta como real uma situação jurídica não real. Este aparecer sem ser coloca em jogo interesses humanos relevantes que a lei não pode ignorar”[1]. Vicente Ráo sintetiza assim esses pressupostos para a caracterização da aparência de direito:

“São seus requisitos essenciais objetivos: a) uma situação de fato cercada de circunstâncias tais que manifestamente a apresentem como se fora uma situação de direito; b) situação de fato que assim possa ser considerada segundo a ordem geral e normal das coisas; c) e que, nas mesmas condições acima, apresente o titular aparente como se fora titular legítimo, ou o direito como se realmente existisse”[2].

Outro elemento ainda da aparência de direito é a onerosidade do ato praticado em erro. Elucida Gustavo Birenbaum em acurado trabalho sobre o tema da titularidade aparente[3] que, se em matéria de legitimação aparente, a proteção da confiança do terceiro de boa-fé sempre importará, invariavelmente, em um prejuízo do verdadeiro titular da situação jurídica aparente, parece ser um imperativo da justiça comutativa somente admitir-se a solução extrema da validade do negócio realizado com um legitimado aparente quando aquele que errou de boa-fé tiver tomado parte em um ato a título oneroso. Faz-se necessário, pois, que a confiança a ser tutelada tenha derivado de um ato de disposição patrimonial.

Renzo Bolaffi preconiza essa solução ao falar dos direitos adquiridos a título gratuito do herdeiro aparente. No conflito de interesses entre o verdadeiro herdeiro, que resta prejudicado pela tutela acordada para a aparência, e o terceiro, que está de boa-fé, adquirente a título gratuito, o Código Civil italiano (de 1865) estabelece a preferência para o primeiro[4].

A confiança é o efetivo fundamento para a eficácia do ato praticado pelo titular aparente.  A confiança é definida em Luhmann como um mecanismo em que os atores sociais reduzem a complexidade interna do seu sistema de interação. Isto pode ocorrer pela adoção de expectativas específicas sobre o comportamento futuro de outros pela seleção de possibilidades, podendo basear-se em processos históricos, em características compartilhadas ou em mecanismos institucionais. Luhmann destaca três tipos de confiança: a processual, a baseada em características e a institucional.

A confiança institucional é formada pela estrutura social formal, em que os mecanismos legais tendem a reduzir os riscos de confiança e tornam mais fácil sua existência, podendo ser deliberadamente produzida com a consideração de que seus mecanismos necessitam ser legitimados socialmente para serem efetivos[5]. É essa confiança institucional a que interessa ao direito. As relações sociais são inteiramente perpassadas por interações de confiança que, sedimentadas por valores, possibilitam as trocas e os acordos.

Anthony Giddens em percuciente trabalho explica como a confiança torna-se uma relação institucional nas sociedades pós-modernas ressaltando que se percebem três grandes forças dinâmicas na sociedade contemporânea: a separação do tempo e espaço; a existência de relações sociais em contextos sociais locais, sem que necessariamente haja contato face a face, mediadas pela confiança em meios de intercâmbio; e a reflexividade institucional, que corresponde à entrada contínua de conhecimento afetando as ações dos indivíduos e grupos, desestabilizando certas formas básicas de relações de confiança e resultando na ampliação da sensação de instabilidade e incerteza. A separação entre tempo e espaço tende a impedir a formação das bases tradicionais de confiança fundamentadas na família, na amizade e no parentesco. Ao mesmo tempo, os sistemas abstratos tendem a desempenhar papel semelhante ao transferir a confiança rosto no rosto para o sistema legal, o governo e os códigos de conduta, para citar alguns exemplos, fazendo surgir uma situação ambivalente.

De um lado os indivíduos depositam confiança em instituições ou mecanismos técnicos avalizados pelo conhecimento científico ou pela tradição e, de outro, assumem uma atitude reservada, intimista, sem abertura para a interação com o outro em relações pessoais. A confiança é referenciada mais pelos sistemas abstratos ou peritos do que pelo especialista. Já a reflexividade social é baseada na afirmação de que as condições em que vivemos hoje na sociedade são cada vez mais o resultado de nossas próprias ações e, inversamente, nossas ações vivem cada vez mais para administrar ou enfrentar os riscos e oportunidades que nós mesmos criamos. Então, a confiança não é dada apenas pela filiação a uma família ou comunidade, mas também é construída por meio de escolhas. Assim, a separação entre tempo e espaço, os mecanismos de desencaixe e a reflexividade institucional desestimulam certas formas básicas de relações de confiança dos atributos de contextos locais.

Embora a confiança seja propriedade de expectativa de comportamento bilateral, existente entre indivíduos, ela também pode ser estendida para troca entre organizações, uma vez que os relacionamentos inter organizacionais são gerenciados por indivíduos A confiança nas relações inter organizacionais inclui assim um conjunto de expectativas entre parceiros com relação ao comportamento dos diversos indivíduos e à satisfação de cada um[6].

Como esclarece no entanto Carneiro da Frada o problema está na ambiguidade do conceito de confiança. Tanto se pode exprimir através dele um dado psicológico individual do sujeito como a posição daquele que beneficia, independentemente de um ato de consciência da tutela jurídica de um interesse. A confiança deixa por saber se aquele que, por exemplo, no âmbito de um contrato, sofre um dano no seu restante patrimônio, é protegido porque confiou de fato na correção do comportamento da outra parte ou se é tutelado porque devia poder confiar (figurando-o ou não) em que o outro observaria a conduta exigível.

No último caso avulta que o decisivo na qualificação do ato lesivo é o puro e simples desrespeito da conduta violada. A querela entre uma concepção psicológica e um entendimento normativo da confiança reflete o quanto nessa doutrina se mistura o fático e o normativo, deixando-se de distinguir claramente entre causa e efeito da proteção. Carneiro da Frada, citando Bar, alerta que se corre o risco da argumentação circular: “É lícito confiar porque existe um fundamento para a pretensão, esta nasce, porém, quando se confia[7].

Para superar essa aporia, no pensamento jurídico contemporâneo a mera referência à confiança como fundamento indenizatório surge, depois, substituída pelo conceito de relação de confiança (fiduciary relationship): singulariza, dentre as diversas situações de expectativas, aquelas que são de reconhecida relevância para efeito de responsabilidade.

Não obstante, orientações deste gênero prendem-se ainda assim ao pensamento da confiança, e podem mesmo chegar a suprimir a referência à tutela das expectativas. Emerge aqui uma neutral responsabilidade derivada da existência de ligações ou relações especiais (special relationship), base de deveres particulares de conduta capazes de conduzir à responsabilidade quando violados. Estes desenvolvimentos são, porém, uma compreensível tentativa de dar da confiança uma concepção objetivada: não importa o plano individual e psicológico, se o sujeito acreditou em determinada situação, mas averiguar racionalmente quando e até onde podia confiar; nos fatores que decidem assim, e já não na confiança, encontraríamos o cerne da responsabilidade.

Para este entendimento contribuem evidentemente as dificuldades de prova de um estado de espírito concreto. Entra também, neste domínio, em linha de conta a ambiguidade da experiência dos sujeitos que misturam, confiança e desconfiança: as atitudes de confiança recortam-se antes de mais na conflitualidade; pelo lado inverso, é nos cenários de frustração das expectativas e da desconfiança que a tutela dos convencimentos mais é necessária.

Todos estes motivos implicam a construção da responsabilidade pela confiança em sede, sobretudo, da expectativa de cumprimento de determinados deveres de comportamento a que os sujeitos se teriam de vincular nos relacionamentos, pois os demais deveriam poder contar com a sua observância. Daqui a pergunta: não será mais exato fundamentar a obrigação de indenizar na violação das posições dos sujeitos protegidas por esses deveres, e como situação objetiva de responsabilidade? Não se tratará aqui de simples deveres de proteção direta dos interesses que realmente estão por detrás de uma situação de expectativa?

Este ponto de vista forneceria uma interpretação desligada das ficções aditadas frequentemente às relações de confiança, e que servem por vezes de refúgio à responsabilidade pela frustração de expectativas: importaria, portanto, substituir a confiança por critérios dogmáticos que atendam às características objetivas da situação interpessoal.

Mas, deste modo, a confiança deixa de integrar o modelo normativo da responsabilidade e de ser fundamento desta: a construção da obrigação de indenizar sobre fatores objetivos, independentes das representações dos sujeitos, lança a responsabilidade pela frustração de expectativas para a órbita da responsabilidade por fatos ilícitos, uma vez que em responsabilidade civil o princípio é o de a obrigação de indenizar pressupor a infração de uma regra de conduta, sem importar para o efeito que esses deveres decorram do contrato ou de negócio jurídico, que tenham sido imperativamente fixados na lei ou se fundamentem, em qualquer caso, nas determinações do direito objetivo[8].

A verdade é que esta concepção obriga a enfrentar a questão da relação entre responsabilidade pela confiança e as modalidades tradicionais da responsabilidade civil: terá de ser averiguado especialmente em que medida as pretensões indenizatórias por frustração da confiança não estarão inseridas simplesmente na inobservância comum de normas de comportamento, inobservância geradora, consoante os casos, de uma responsabilidade delitual ou obrigacional (sem que a confiança desempenhe então qualquer papel na emergência da obrigação de ressarcir os prejuízos).

Será pertinente diferenciar no seio da responsabilidade civil a ordem de proteção fundada na doutrina da confiança? O problema exige em particular, uma análise no campo da responsabilidade delitual: o âmbito do negócio e da responsabilidade contratual está longe de abranger muitas das situações para as quais é reclamada uma tutela das expectativas. O ato danoso, conquanto, e a lesão são frequentemente produzidos porque o lesado confiou na adoção, por outrem, da conduta que lhe era exigida e acabou por sofrer prejuízos. Se a confiança então não surge como fator de responsabilidade, porventura nada distinguirá e legitimará uma responsabilidade especial pelas expectativas frustradas.

A tutela da confiança, como sustenta Carneiro da Frada, deve abarcar um espaço próprio entre as modalidades clássicas da responsabilidade civil (contratual e aquiliana), constituindo um terceiro gênero, autônomo, de responsabilidade. A responsabilidade pela confiança se afirma aí onde a tutela das expectativas se deva considerar o elemento determinante da responsabilidade e não simples razão auxiliar para a obrigação de indenizar[9].

Estamos assim diante do elemento chave para a responsabilização jurídica da chamada confiança institucional. A forma impessoal de confiança de que falava Luhmann, condição de desenvolvimento das sociedades pós-modernas, estará tutelada sempre que a confiança não se reduza a outros elementos como o cumprimento da norma (responsabilidade delitual) ou dos deveres laterais de conduta (impostos pela boa-fé) sendo razão auxiliar da obrigação de indenizar mas sim sendo o elemento constitutivo-causal dos seus efeitos. Deste modo, integrando a confiança o Tatbestand de responsabilidade, a não verificação em concreto de expectativas tem como consequência inexorável a irresponsabilidade do sujeito. Nenhuma regra (de responsabilidade ou outra) se pode aplicar se não está demonstrada ou se reinam incertezas acerca da ocorrência da confiança. Pelo contrário, apresentando-se a confiança apenas como um telos de uma norma a não verificação de expectativas determina (quando muito) a necessidade de uma redução teleológica[10].

A obrigação de indenizar, por frustração de expectativas alheias, com os contornos e a extensão acima descritos, não encontra, segundo Carneiro da Frada, no ordenamento civil português uma consagração geral. Não obstante, estabelece aquele ordenamento alguns dispositivos que preveem a proteção da confiança[11].

Esclarece Carneiro da Frada a fundamentação autônoma do “dano de confiança”, distinto da responsabilidade delitual e dos deveres laterais de conduta decorrentes da boa-fé, através da promessa de casamento. Para o autor é inviável considerar que a promessa de casamento cria um vínculo de natureza contratual ou negocial; não faz sentido admitir-se um vínculo que (afinal!) não vincula. Na realidade, a reparação do dano decorrente do respectivo desrespeito deriva da consideração do compromisso como fato gerador da confiança: nesse aspecto é sempre o resultado de uma ponderação objetiva por parte do ordenamento, não efeito “direto” da autonomia negocial (ainda que ligado a um Tatbestand negocial).

A responsabilidade pela confiança é também autônoma em relação à violação dos deveres laterais de conduta impostos pela boa-fé. Existe responsabilidade por frustação das expectativas, distinguindo-se esta da responsabilidade decorrente da negligência no não esclarecimento da falta de disponibilidade para a sua celebração ou de causação dolosa da convicção: ambos os comportamentos contrariam sem dúvida exigências de correção e probidade de conduta que impendem sobre os nubentes e se intensificam naturalmente com a promessa de casamento, mas não se confundem com a responsabilidade por confiança.

Do mesmo a ausência de motivo não transforma a retratação num ilícito, como a “culpa” do sujeito no rompimento da relação não chega para macular com a ilicitude o seu comportamento. O conceito de culpa (em rigor incompatível, ao pressupor uma ilicitude, com a manutenção da celebração do casamento) deve entender-se como um conceito não técnico. Ele equivale ao recesso injustificado ou ao injustificado provocar do recesso alheio para efeito de identificação do campo em que a responsabilidade pela confiança é chamada a operar[12]. Tudo conflui assim para interpretar a responsabilidade por frustração de uma promessa de casamento como afloramento da teoria da confiança[13].

Mesmo não podendo admitir-se com caráter de generalidade a existência de um dever de corresponder à confiança alheia, importa concluir que a responsabilidade pela confiança se distingue na realidade daquela que emerge da violação de deveres de agir. Depura requisitos de proteção como a razoabilidade e o investimento de confiança: tais pressupostos são completamente estranhos a um simples responder por violação de normas de agir, mas são congruentes com um modelo de responsabilidade compensatória, segundo a primazia desejável da tutela negativa da confiança; a singularidade dogmática da responsabilidade pela confiança ancora na ligação genérica à razão prática e incorpora a dimensão prudencial que caracteriza especificamente a interação; fica ultrapassado o paradigma da causalidade, inerente às formas de responsabilidade clássicas.

A doutrina da confiança em si mesma não se limita a formular um princípio jurídico, eleva-se a verdadeira teoria, organizada em torno daquele princípio. Envolve um conjunto articulado de enunciados que procura (i) explicitar o conteúdo de justiça material que lhes é subjacente (ii) e se proporciona um enquadramento de solução para outros casos.

Mas neste revestimento a teoria da confiança não propiciará, por si só, as soluções de casos concretos, enquanto requeira o complemento ou a especificação através de normas, logrando ainda assim preservar o seu valor, mesmo perante as restrições que tenha de admitir: a sobrevivência da teoria da confiança depende assim do seu cabal desempenho heurístico, atingindo o problema sobretudo a proteção negativa das expectativas.

A regulação legal fornece porventura apoios para essa responsabilidade. Contudo, a sua construção jurídica geral ultrapassa, e em muito, o mero preenchimento de lacunas que essa regulação eventualmente apresente. Com efeito, não é assim só: os afloramentos da responsabilidade pela confiança são demasiados dispersos para que possa tratar-se do mero completar da teia normativa de acordo com a sua própria lógica, transcende esse nível. Decerto movimenta-se num espaço nesse sentido livre de normas, situado para além do seu horizonte[14], mesmo quando se ampara em certas cláusulas gerais ou conceitos indeterminados como o abuso de direito e a boa-fé: a operação envolvida não se traduz na simples concretização de uma determinada regra, obedecendo para isso à pauta valorativa que ela contém; ler numa delas a responsabilidade pela confiança não é possível sem pontos de fixação exteriores a essa mesma norma.

Este tipo de expansão do sistema jurídico só se compreende superando o dogma do positivismo normativista que o identifica com a lei, e contra o qual estão fatores vários, entre os quais, por exemplo, a proibição da denegação da justiça.

Acresce, além disso, que a consagração legislativa de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados como o abuso do direito envolve uma autorização de ultrapassagem do limiar da lei por parte do ordenamento. Por conseguinte, tudo se resume a averiguar como justificar este desenvolvimento. E a proteção da confiança corresponde, depois, a um princípio ético-jurídico, indeclinável, saliente nas imposições que se sentem de modo particular quando não há alternativa prática que evite, para além da razoabilidade, a ameaça de ficar por satisfazer uma forte necessidade de tutela jurídica: quem induz outrem a confiar, deve responder caso frustre essa confiança, causando prejuízos.

O pensamento da confiança integra-se, pois, no sistema jurídico sem romper as suas estruturas e coerência: numa época marcada pela pressão no sentido do incremento da interação humana, e pela tendência da impessoalidade, correlato da urgência de uma maior e energica autonomia dos sujeitos, a proteção da confiança diminui os riscos da ação ligada à progressiva interdependência dos sujeitos; aprofundar os dois pilares da liberdade e da responsabilidade, eis, para Frada, a via do Direito[15].

Nas primeiras décadas do século XX, Vittorio Salandra, ao tratar da extensão e fundamento jurídico da responsabilidade pelas obrigações de uma sociedade irregular, consoante o art. 98 do Código de Comércio italiano[16], já salientava as peculiaridades da responsabilidade por confiança, que não podia enquadrar-se nos limites estreitos nem da culpa aquiliana nem da contratual:

“Voltamos agora à natureza jurídica da responsabilidade do art. 98. Esta não pode dizer-se derivada da culpa aquiliana, nem da culpa contratual. Na primeira categoria não me parece que possa enquadrar-se, porque não é vista culpa no operar em nome de uma sociedade que efetivamente existe e que a lei não proíbe. E nem mesmo se pode falar de responsabilidade objetiva. O terceiro de fato não age para remover um efeito danoso que havia sofrido em seu patrimônio em dependência da ação de que lhe fizeram crer na existência de uma sociedade. Ele age para obter o adimplemento de uma obrigação e não para ser ressarcido do efeito do inadimplemento. Por isso não é o caso nem mesmo de se falar em culpa contratual[17].

Como vimos a confiança é um valor fundante do nosso sistema, sendo essencial mesmo para a explicação do desenvolvimento econômico[18]. Como corolário desse valor confiança no campo do direito tutela-se esta pelo chamado princípio da responsabilidade por situações de confiança. Sempre que estivermos diante de uma relação especial entre dois sujeitos na qual a criação-defraudação da confiança constitua o vero fundamento da obrigação de indenizar, o princípio se aplica. Como conclui Carneiro da Frada:

“A responsabilidade por confiança é parte do direito civil vigente. Na sua essência, exprime a justiça comutativa, na forma específica da justiça correctiva (meramente) compensatória. O seu reconhecimento radica na indeclinável exigência do direito segundo a qual aquele que origina a confiança de outrem e a frustra deve responder, ao menos em certas circunstâncias, pelos danos causados. O recurso a este pensamento torna-se imprescindível para a racionalização de certas soluções normativas, mas transcende por força os concretos afloramentos em que se plasma. A sua intervenção autônoma, superadora do plano da lei, terá naturalmente como correspondente à sua natureza de princípio jurídico fundamental, de compatibilizar-se com as demais determinações, princípios e valores que informam a ordem jurídica, que não pode subverter. Tal qual qualquer outro princípio de carácter geral, a força expansiva que lhe inere conhece por isso limites e restrições no processo de concretização-aplicação. É tarefa da ciência jurídica operacionalizá-lo em contextos específicos típicos. A sua subordinação a condições de relevância não prejudica a sua característica de princípio fundamentador de consequências jurídicas. Entre aquelas condições avulta usualmente a presença de uma relação especial entre sujeitos, cujo preenchimento se torna assim determinativo da responsabilidade pela confiança”[19]

A aparência, por seu turno, é uma das formas da proteção da confiança asseguradas pela ordem jurídica[20]. A proteção da confiança é o gênero e a proteção da aparência é a espécie, a qual, para tanto, obedece a condições peculiares[21]. No seu âmbito, as situações de confiança, de tutela das expectativas criadas, assumem, porém, caráter geral. Sempre que estivermos diante de uma situação de confiança institucional na qual condições unívocas, consoante as regras de cada ordenamento, demonstrem a necessidade da ordem social de se conferir segurança às operações jurídicas, amparando-se ao mesmo tempo os interesses legítimos dos que corretamente procedem, aplicar-se-á a tutela geral da aparência.

Portanto, a aparência jurídica aplica-se à generalidade das situações jurídicas comutativas de confiança que não sejam regidas por dispositivos próprios, tendo, desta maneira, a abrangência principiológica requerida por um sistema de direito, desde que consideremos que o âmbito de sua aplicação se restringe aquele onde estejam presentes os pressupostos da confiança. Existentes estes a aparência tutela todas as situações de direito.

Em conclusão, a aparência, deste modo, não se restringe a uma série delimitada de fattispecies previstas em lei, como o herdeiro aparente ou o mandatário aparente, mas abrange todas as situações jurídicas de confiança onde os interesses legítimos corretamente exercidos devem ser tutelados em consonância com a segurança das relações jurídicas. Assim, pois, nos casos do ato jurídico aparente, aparência relativa ao objeto do ato jurídico, representação aparente de pessoas humanas e pessoas jurídicas, personalidade processual aparente, cessão de créditos aparente, credor aparente, devedor aparente, sócio aparente, nome aparente, domicílio aparente, consentimento aparente, solenidades aparentes, funcionário de fato, firma aparente, propriedade aparente, ausência aparente de gravames, direito aparente sobre coisas móveis, direito aparente sobre coisas móveis sujeitas a regimes especiais, aparência em títulos à ordem e nos títulos ao portador, aparência em direitos creditórios, herdeiro aparente, capacidade aparente, regime conjugal aparente, cônjuge aparente etc...

A confiança institucional de que nos falava Luhmann[22] pontifica que as crescentes exigências impostas pela extensão do tráfego comercial e a intensificação das relações econômicas hão levado a ampliar a tutela de terceiros e, como contrapartida inexorável, a diminuir a que corresponde aos direitos subjetivos ou às situações jurídicas preexistentes.

Deste modo a teoria da aparência é hoje capaz de produzir aplicação em tudo. A verdade deve ceder à segurança. A necessidade da tutela da boa-fé ética nas relações sociais determinou essa ampliação do seu sentido originário, circunscrito a algumas hipóteses de tutelas específicas de situações de confiança[23].

A tutela geral da aparência em situações de confiança institucional constitui assim, nesse âmbito, exceção a outros princípios gerais, tal como aquele que dispõe que ninguém transmite a outro direito melhor ou mais extenso do que tem. Sempre que o interesse da sociedade o exija e os terceiros se achem na impossibilidade de conhecer uma situação jurídica qualquer, o que tem a seu favor a aparência de um direito, revestida das formas legais, é considerado pela lei como se o tivera na realidade, ao só objeto de proteger os terceiros que contratam com ele.


Notas e Referências:

[1] FALZEA, Angelo. Apparenza. Enciclopedia Del Diritto. Vol. II. Milano: Giuffré Editore, 1958, p. 685.

[2] RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 3. ed. São Paulo : Max Limonad, 1965, p. 243.

[3]BIRENBAUM, Gustavo Benjamin. A titularidade aparente: eficácia do negócio realizado com o aparente titular de direito por força da tutela da confiança legítima. 2004. 222 f. Dissertação de mestrado (Mestrado em Direito Civil) - Faculdade de Direito, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004, p. 74/75.

[4] BOLAFFI, Renzo. Le teorie sull´apparenza giuridica. In: Rivista di Diritto Commerciale. Vol. XXXII, Parte Prima. Milano : Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1934, p. 136.

[5] LUHMANN, Niklas. Confianza. Barcelona: Antrophos Editorial, 2005.

[6] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.

[7] FRADA, Manuel Antonio Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2004, p. 252/253.

[8] Sobre o papel da confiança na fundamentação de negócios jurídicos, ver, por todos: GRASSETTI, Cesare. Del negocio fiduciario e della sua admissibilittá nel nostro ordinamento giuridico. In: Rivista di Diritto Commerciale. Vol. XXXIV, Parte Prima. pp. 345-378, Milano : Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1936 e GRASSETTI, Cesare. Trust anglosassone, proprietá fiduciaria e negozio fiduciario. In: Rivista di Diritto Commerciale. Vol. XXXIV, Parte Prima. pp. 548-553, Milano : Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1936.

[9] FRADA, Manuel Antonio Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2004, p. 350.

[10] FRADA, Manuel Antonio Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. op. cit., p. 355.

[11] ARTIGO 899º (Indemnização, não havendo dolo nem culpa)

O vendedor é obrigado a indemnizar o comprador de boa fé, ainda que tenha agido sem dolo nem culpa; mas, neste caso, a indemnização compreende apenas os danos emergentes que não resultem de despesas voluptuárias.

ARTIGO 909º (Indemnização em caso de simples erro)

Nos casos de anulação fundada em simples erro, o vendedor também é obrigado a indemnizar o comprador, ainda que não tenha havido culpa da sua parte, mas a indemnização abrange apenas os danos emergentes do contrato.

ARTIGO 1594º

(Indemnizações)

1. Se algum dos contraentes romper a promessa sem justo motivo ou, por culpa sua, der lugar a que outro se retracte, deve indemnizar o esposado inocente, bem como os pais deste ou terceiros que tenham agido em nome dos pais, quer das despesas feitas, quer das obrigações contraída na previsão do casamento.

[12] Veja-se que não admitir a tutela do dano de confiança, nos casos em que inexiste violação aos deveres de conduta da boa-fé, significa deixar situações iníquas sem reparação, o que não parece admissível em uma concepção moral do direito, como a das sociedades pós-modernas. Como nessa decisão do TJRGS: Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRGS. 7ª Câmara Cível. Apelação Cível nº 70 012 349 718. Comarca de Santa Maria. Relator: Desembargador Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Ementa. Dano moral. Indenização. Rompimento de noivado prolongado. 1. Não se pode desconhecer que inúmeros fatos da vida são suscetíveis de provocar dor, de impor sofrimento, nem se olvida que qualquer sentimento não correspondido pode produzir mágoas e decepção. E nada impede que as pessoas, livremente, possam alterar suas rotas de vida, quer antes, quer mesmo depois de casadas. 2. Descabe indenização por dano moral decorrente da ruptura, quando o fato não é marcado por episódio de violência física ou moral e também não houve ofensa contra a honra ou a dignidade da pessoa. 3. Não tem maior relevância o fato do namoro ter sido prolongado, sério, ter havido relacionamento próximo com a família e a ruptura ter causado abalo emocional, pois são fatos próprios da vida. Recurso desprovido.

[13] FRADA, Manuel Antonio Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. op. cit., p. 836/837.

[14] FRADA, Manuel Antonio Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. op. cit., p. 889.

[15] FRADA, Manuel Antonio Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. op. cit., p. 896/897.

[16] Art. 98. Se o sócio, promotor, administrador ou todo aquele que opera uma sociedade não legalmente constituída contrae em nome dessa sociedade, é vinculado solidariamente e sem limitação pelas obrigações que esta assume.

[17] SALANDRA, Vittorio. Extensione e fondamento giuridico della responsabilità personale per le obligazzioni delle società irregolari. In: Rivista di Diritto Commerciale. Vol. XXVI, Parte Seconda. Milano : Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1928, p. 10.

[18] Ver, por todos: PEYREFITTE, Alain. A sociedade de confiança: ensaio sobre as origens e a natureza do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999. FUKUYAMA, Francis. Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

[19] FRADA, Manuel Antonio Carneiro da. Teoria da confiança e responsabilidade civil. Coimbra: Almedina, 2004, p. 901.

[20] MATTIA, Fábio Maria de. Aparência de representação. São Paulo: Editora Cid, 1999, p. VIII.

[21] LANDIM, Francisco. O credor aparente. São Paulo: Editora Cid, 1996, p. 92.

[22] LUHMANN, Niklas. Confianza. Barcelona : Antrophos Editorial, 2005

[23] CÓRDOBA, Marcos M. Efectos jurídicos de la fé em la apariencia. O herdeiro aparente. In: CÓRDOBA, Marcos M. (org.) Tratado de la buena fe en el derecho. v. 1. Buenos Aires: La Ley, 2004, p. 645


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