A REFORMA PROTESTANTE E A LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA E DE CRENÇA NA CRFB/88  

15/11/2018

No dia 31 de Outubro comemora-se o Dia da Reforma Protestante, uma homenagem à mesma data do ano de 1517 em que o monge agostiniano, Martinho Lutero, apregoou à porta da Igreja de Wittenberg, as 95 teses que propunham reformas na Igreja Católica. Três anos depois, Lutero foi excomungado e se iniciou a tradição luterana. Vários movimentos e personagens reformadores surgiram para compor o movimento de Reforma Protestante ocorrido na Europa do século XVI.

Dos vários movimentos havidos no período da Reforma Protestante, o mais interessante é o Anabatismo. De acordo com o historiador Justo L. Gonzalez, a tese dos Anabatistas era de que reformadores como Zwínglio e Lutero “esqueciam” que havia um contraste entre a igreja e a sociedade que a rodeia, sobretudo no que tangia à relação entre a igreja e o Estado, o que explicaria a perseguição do Estado Romano aos primeiros e verdadeiros cristãos. Todavia, desde que o imperador Constantino tornou o cristianismo religião oficial do Estado, o chamado cristianismo primitivo havia sido abandonado.

Portanto, para os anabatistas, Lutero desejava acertadamente livrar a igreja de tudo que era contrário às Escrituras e Zwínglio, por sua vez, sustentava que só deveria ser praticado pelo fiel o que tinha base bíblica e em que se cresse sinceramente. Mas ambos os reformadores não estavam dispostos a se renderem às implicações lógicas daquilo que afirmavam defender.

Assim, a primeira tese defendida pelos anabatistas era a de que não bastava a alguém nascer em um “país cristão” para ser um cristão, pelo ótimo argumento de que somente pessoas poderiam ser cristãs e ninguém o seria se não aderisse voluntariamente à comunidade de cristãos, `a igreja.

Outra tese que reputo bastante óbvia e facilmente constatável nas Escrituras Sagradas ou Bíblia Sagrada, era a de que a fé cristã era fundamentalmente pacifista[i]. Portanto, os cristãos não deveriam tomar as armas para defenderem a si mesmos nem para defender sua pátria, ou mesmo a fé cristã[ii].

Essas opiniões decorrentes da simples leitura do Sermão do Monte foram o bastante para atraírem não só a reprovação dos reformadores protestantes quanto de pessoas católicas, o que torna compreensíveis as palavras de Albert Nolan, num livro intitulado Jesus antes do cristianismo quando afirma: “Jesus não pode ser totalmente identificado com o grande fenômeno religioso do mundo ocidental, conhecido como cristianismo. Ele paira acima do cristianismo como o juiz de tudo o que este tem feito em seu nome” (p.15).

Gonzalez (1995) afirma que as ideias anabatistas já eram conhecidas de muitos outros cristãos e que em Zurique, especificamente, havia um grupo chamado de “Irmãos” que defendia a criação de congregações cujos membros fossem crentes conforme os ensinos dos evangelhos para se diferenciarem daqueles que se consideravam cristãos pelo simples fato de terem nascidos em países que aderiram ao catolicismo ou ao protestantismo e batizados quando crianças.

A palavra “anabatismo” significa “rebatismo” e faz uma alusão à necessidade de um segundo batismo para aquele que foi batizado quando criança sem saber porque seus pais o estavam batizando e o que o batismo significava. E não era criada e nem utilizada pelos que defendiam o batismo consciente, já que como bem observa Gonzalez (1999, p.99):

 

Naturalmente, esse nome não era de todo exato, porque o que os supostos rebatizadores diziam não era que era necessário batizar-se novamente, mas sim que o primeiro batismo não era válido e que assim o que se recebia depois  de confessar a fé era o primeiro e único batismo. Porém, em todo caso, a história os identifica como “anabatistas”, e esse é o nome que daremos a eles a fim de gerar confusões.

 

Lamentavelmente, o historiador prefere reproduzir a “fake new” a respeito das ideias desses cristãos que passaram a ser identificados com ideias que nunca propagaram, alegando razões metodológicas e historiográficas; o certo é que a negação e desqualificação dos “anabatistas” fizeram parte do processo de construção da identidade deles como “vilões” no interior do movimento dos reformadores do século XVI.

A seguir, nota-se o momento em que os pacifistas cristãos passam a ser adjetivados inicialmente de “pacifistas extremos” e, logo depois, de “subversivos”. Nas palavras de Gonzalez:

 

O movimento anabatista[sic!]logo atraiu grande oposição, tanto por parte dos católicos como dos reformadores. Ainda que essa oposição se expressasse comumente em termos teológicos, o fato é que os anabatistas foram perseguidos porque eram considerados subversivos. Apesar de todas as reformas, Lutero e Zwínglio continuaram aceitando os termos fundamentais da relação entre o cristianismo e a sociedade que se havia desenvolvido a partir de Constantino. Nem um nem outro interpretava o evangelho de maneira a ser uma provocação radical a ordem social.

 

                Repare que aquilo que poderia ser aceito como good new (Boa Notícia) aos reformadores passou a ser tratado como “provocação” a ser violentamente combatida. Sim, o “pacifismo extremo” inerente à mensagem de Jesus e seus discípulos passa a ser uma afronta, uma ofensa, um ato de violência contra aqueles que não poderia tolerar a paz e o amor presente na proposta de Jesus, pois “ao insistir no contraste entre a igreja e a sociedade natural, os anabatistas estavam afirmando que as estruturas de poder dessa sociedade não deveriam ser transferidas para a igreja” , razão por que católicos e protestantes não desejaram acatar as ideias que tão abertamente os anabatistas proclamavam como estando presentes nos ensinos do próprio Jesus e seus apóstolos.

            A partir de 1525 começaram as perseguições aos anabatistas, já que “o luteranismo se via agora sustentado pelos príncipes que o haviam abraçado, os quais gozavam de grande autoridade, não somente nos assuntos políticos, como também nos eclesiásticos”. (GONZALEZ, 1999, p. 101).

Em 1528, foi decretada a pena de morte aos anabatistas por Carlos V que se valeu de uma antiga lei que punia os hereges donatistas que eram culpados justamente por defender o “rebatismo”. Eis por que motivo os irmãos pacifistas foram “xingados” de anabatistas, justamente para se adequarem como agentes no tipo penal em questão, cuja pena era a morte.

O historiador espanhol afirma que “o número de mártires foi enorme” na Suíça, na Alemanha e, especialmente, na Saxônia onde vivia Lutero. Lá, os anabatistas eram condenados conforme leis civis e religiosas acusados de dizer o óbvio: de que se cressem e fossem batizados seriam considerados cristãos pela igreja!

Gonzalez observa que, “com cruel ironia”, muitos anabatistas eram afogados, como se estivessem sendo batizados (do gr. baptizo, sepultamento), além de serem queimados vivos, não antes de serem torturados, esquartejados, etc.

Como se não bastasse, o ódio àqueles que ousaram defender o Evangelho (Boa Notícia) de Jesus, logo apareceram homens violentos que não poderiam ser contados entre os verdadeiros e pacifistas cristãos, dando a muitos a prova empírica de que precisavam: a de que os anabatistas constituíam um movimento de radicais subversivos e violentos que se contrapunham aos civilizados reformadores protestantes e aos católicos pertencentes à verdadeira igreja cristã.

Ora, é a este tipo de hermenêutica da violência, a estes truques semânticos e a esta eterna fábrica de significados na qual são forjados inimigos a todo instante, que a nossa Constituição, desde sua promulgação, está sujeita. Nunca faltaram aqueles que, numa primeira estratégia, tenta atacar os seus melhores intérpretes, maculando-lhes a imagem, atacando-lhes a honra, difamando-lhes a história; num segundo momento, procura-se relativizar o que ela estabelece de maneira eloquente e inequívoca, a fim de absolutizar apenas a parte que lhes convém; mas é a terceira estratégia a que considero mais nefasta, a saber, afirmar, efetivamente, todos os direitos que ela assegura e garante para, logo quando possível, desrespeitá-los e afrontá-los não em si mesmos, mas no outro.

Por força dos princípios e valores da nossa Constituição, todo cidadão brasileiro tem liberdade de consciência e de crença.  A liberdade de consciência está referida tanto no art. 5º, inciso VI e inciso VIII quanto no art. 143, § 1º e cujo conteúdo diz respeito à faculdade que tem o indivíduo de poder formular suas ideias sobre si mesmo e sobre o mundo em que vive de maneira que ninguém pode interferir na intimidade de sua vida mental e nem tentar impor concepções filosóficas, religiosas ou políticas de qualquer natureza. Com isto não se quer dizer que os cidadãos não tenham direito de conhecer tais concepções ou que a elas não possa acessar de maneira rigorosa e metódica como o sistema público estatal pretende oferecer.

A liberdade de consciência é inviolável e, por isso mesmo, o indivíduo é livre para agir em conformidade com suas convicções e conforme sua consciência. O Estado não pode, portanto, obriga-lo a agir de forma a violentar a própria consciência. No entanto, sua consciência, por outro lado, não está acima da Constituição que a protege. Ela deve ser a expressão de um sistema de pensamento coerente e partilhado historicamente com outros sob a ordem jurídica nacional.

No que tange à liberdade religiosa propriamente dita, a Constituição acolhe o desejo do cidadão de aderir a uma religião e protege as suas práticas litúrgicas e o local onde ocorrem, quer um templo, quer uma praça pública onde haja reunião, ressalvadas as limitações legais.

Não sendo confessional e nem ateu, o Estado não pode conduzir ou educar religiosamente os cidadãos, mas permite que o casamento religioso produza efeitos civis (art. 226, §§ 1º e 2º); além de assegurar a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva, para aqueles internos que a desejem.

Por fim, fique registrado que a Constituição não trata as questões religiosas como se empresariais.

 

Notas e Referências

Bíblia Sagrada: Pobreza e Justiça. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2011.

GONZALEZ, Justo L. “A era dos Reformadores” pp.97-106. In: E até os confins da Terra: uma história ilustrada do Cristianismo. Trad. Itamir N. de Sousa. São Paulo: Vida Nova, 1995. v. 06.

NOLAN, Albert. Jesus antes do cristianismo. Trad. Grupo de Tradução são Domingos. São Paulo:  Paulus, 1987.

BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo.7ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988.

[i] Mt 5: 1-43.

[ii] A objeção de consciência está prevista em nossa CRFB/88 em seu art. 143, e diz respeito, quase sempre, a recusa do indivíduo em pegar armas. A falta de lei que estabeleça a prestação alternativa para aqueles que alegarem imperativo de consciência não torna inviável o direito à objeção de consciência, por se tratar de norma de aplicabilidade imediata (art. 5º, parágrafo primeiro).

 

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