A Questão Criminal: inflexões e reflexões sobre Estado, delito, linguagem, ideologia e poder (Parte 2): Das (equivocadas) premissas estruturantes do poder punitivo – Por Guilherme Moreira Pires

14/04/2015

Parte 2

"El saber de los señores. No se interroga científicamente por mera curiosidad, sino para obtener algún resultado, que permite ejercer un poder sobre el objeto interrogado: si se estudia a la vaca, se lo hace para saber cómo puede producir más leche; si se interroga al suelo es para saber cómo obtener metales; si se interroga al cielo, es para prever las lluvias y las consechas. No se pregunta cualquier cosa, sino lo que interesa para el objetivo de poder [...]" (ZAFFARONI, Eugenio Raúl, 2011, p.51).

Como se espera ter iluminado na parte 1, constitui total ilusão a crença de que podemos, refletir criticamente sobre a "questão criminal" negligenciando "Estado", "delito", "linguagem", "ideologia" e "poder".

Tanto se mostra necessário considerá-los, que a mesa 5 do Seminário Latino-Americano do Abolicionismo Penal no Espírito Santo, se incumbiu precisamente de abordá-los; com professores versáteis e múltiplas perspectivas.

Considerando a interação entre as palavras-chave propostas, seja a) na semiótica da opressão iluminada pelo prof. Attila Piovesan; b) nas bases da filosofia moderna (que alimentam o punitivismo contemporâneo) abordadas pelo prof. David G. Borges; c) ou, ainda, na crítica às inaceitáveis limitações comumente (re)produzidas no ensino jurídico, desenvolvida pelo prof. Gabriel V. Riva, depreende-se a certeza de que, a questão criminal, criticamente compreendida, não se exaure da forma como é realisticamente abordada pelos opera-dores jurídicos.

Na referida mesa - mediada por Adolfo Oleare -, vale frisar que somente um se graduou em Direito, sendo os demais de outras áreas.

Isso revela algo. Não é necessário ser um jurista para pensar criticamente acerca da questão criminal. Mas é necessário pensar! Estar disposto a desconstruir o senso comum, ir contra o (im)posto - o que, adivinhe, nos remete a muito!

Persistimos alimentando o cárcere, uma gaiola invisível de ódio, um caldeirão amplificador de problemas, desferindo cortes em galhos e negligenciando problemas e premissas de base; ignoramos o caldo estruturante que energiza o imaginário punitivo enquanto acorrenta a imaginação não punitiva.

Reféns de nossos lindes lingüísticos, não percebemos que o crescente imaginário punitivista, nossos arquétipos de Estado e sociedades contemporâneas nutrem profunda conexão com uma determinada visão de humanidade que prevaleceu, premissa incorporada e responsável pela estruturação de todos os nossos sistemas e subsistemas subsequentes, como resta cristalino nos múltiplos discursos legitimantes do poder punitivo.

O senso comum exige um Estado forte em termos de controle e poder punitivo, paternalista e sequestrador do conflito, infligidor de castigos e adestrador de vidas, incumbido de brecar o falacioso turbilhão de violências que supostamente emergiria na ausência desse viés.

Assim sopram os ventos apoiadores e legitimadores do poder, reforçando a crença nesse turbilhão indomável caso pensemos para além do poder punitivo enquanto categoria central.

Fundamentos para tanto encontram amparo nas visões profundamente egoístas e individualistas de humanidade, ditas realistas; perspectivas preocupadas em descrever e/ou pensar a partir da incorporação da "inimizade humana" como verdade inescapável, descrevendo de modo dantesco o mítico estado de natureza (status naturae) como um recorte desprovido de ordem, e mesmo fazendo profecias sobre como seriam as coisas sem austero controle.

Exemplificativamente, quando sugere-se no Brasil cessar a guerra às drogas (o que é terrivelmente urgente!) os múltiplos discursos criminológicos do cotidiano convergem cristalinamente neste denominador comum: mostra-se possível extrair de seus discursos rasteiros o seguinte ponto: preocupação com "o caos" que supostamente pairaria se "liberassem tudo", como repetem quase que mecanicamente.

Já entraram na caixinha (e na linguagem) do poder punitivo: pensam em "ordem" a partir da ideia de "controle" e imposições arbitrárias, eis que, sem isso, não vislumbram "ordem", mas espirais de violências que fatalmente resultariam, como adoram dizer, no "caos", numa guerra-total que engoliria os "cidadãos de bem"; emergência fictícia que permite a justificação (inclusive oficial) de todo um aparato e ideário punitivista.

Necessidade de controle. Fascínio pelo controle. Medo do que não se pode controlar. São características dessa percepção "vencedora" de humanidade que, logo no início, já desistiu de tudo, entregando-se ao poder exercido sobre si, validando-o, legitimando-o, implorando-o proteção.

Nossas instituições e significações adotam um referencial que já desistiu da humanidade, que matou a humanidade, e que só consegue pensar a partir dessa morte simbólica.

Assim, se aposta facilmente em figuras hierárquicas e arbitrárias para evitar tal cenário-retórico, energizando, portanto, entidades retóricas. Como o Estado, de poder colossal, e ao mesmo tempo uma realidade física, supostamente apta a impedir essa guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes), cuja intervenção seria necessária para evitar as relações embasadas na discórdia, violência e desordem que fatalmente caracterizariam o convívio entre as pessoas.

Honrosamente se ativa o fascínio por um poder que nos controlará cada vez mais, cinicamente sob a estrela de nos proteger, legitimado pelas reentrantes asneiras circulares que retroalimentam a lógica do ius puniendi, um direito de punir forjador de sentidos.

Dizem os apoiadores reformistas do sistema penal que a seletividade como estrutural nos remete a uma visão equivocada por ser fatalista; esse é um dos argumentos que alimenta perspectivas tímidas, que buscam melhorar o jogo dentro dos limites do jogo, pensando e seguindo as regras e linguagem do próprio jogo, diga-se de passagem, um extremamente arbitrário e injusto, em que o encarceramento massivo é legal - e aplaudido! ("É pouco!", bradam as pessoas do país com a terceira maior população carcerária do planeta!)

Repetem sobre fatalismo, quando o verdadeiro fatalismo consiste em bases ainda mais profundas, como no referencial de humanidade incorporado e aceito como única realidade possível: uma visão limitada e degradante das pessoas, que, no fundo, já desistiu delas.

Mas que não desistiu do poder.

Aprendemos o que somos e temos interiorizado hoje. Por quais razões deveríamos acreditar que devemos nos contentar com um imaginário tão reducionista, e com uma linguagem punitiva tão limitada, promovedora de sofrimento estéril?

Não tínhamos nada. Do referencial de quem não tinha ou sabia nada, só não pareceria impossível chegar aonde estamos porque sequer tínhamos capacidade de duvidar de tal (im)possibilidade.

Mas estamos aqui, (re)pensando, atuando, escrevendo textos e livros. O que nos leva, hoje, a desconfiar da nossa possibilidade de aprender novas linguagens e questionar a atual, o (im)posto e suas tendências? Ou não podemos?  Quem diz que não podemos?

As brutalizantes tendências do cárcere já foram comparadas com a tendência do chacal de engolir o alimento vomitado: no caso do cárcere, as pessoas que foram expelidas, que, de todo modo, receberam uma marca inapagável, uma cicatriz que carregarão, atraindo consequências sobremaneira significativas em suas vidas; um estigma tendente a atrair mais estigmas, danos, dores e sofrimentos.

Em As Prisões já pontuava Kropotkin (p.10): "Quem tem estado no cárcere, voltará a ele. Esta frase é quase um axioma: as cifras o demonstram."

Construir mais prisões, aplaudir o enrijecimento dos mecanismos de castigo e controle, energizar estruturas de pensamento que vislumbram na punição um referencial, bradar redução da idade penal, apoiar a demanda de grupos por proteção através do Direito Penal: esses são todos ingredientes catalisadores de barbáries e massacres, invocadores de (falsas) respostas ativadas por uma linguagem - e enquanto uma linguagem - que opera enquanto um "cala a boca". É preciso buscarmos mais.

"Nossa capacidade de prever um outro mundo depois do grande encarceramento em curso pode depender de nossa capacidade de renunciar a metáforas que realimentam o princípio da punição, ou seja, o princípio – jamais demonstrado! – segundo o qual a imposição de sofrimento previne transgressões ou restaura a ordem virtuosa violada." (BATISTA, Nilo, 2010, p.38).

Eduardo Galeano, um gigante que faleceu, escreve no verso do livro La Palabra de los Muertos de Zaffaroni (citado no início desse artigo):

"El peligrosímetro manda matar toda sombra que se mueva, los grandes medios de comunicación son grandes miedos, las campañas electorales parecen películas de terror y la criminología corre el peligro de convertirse en una ciencia de las cerraduras. ¿De dónde viene este mundo nuestro, cada vez menos nuestro? ¿Adónde va, adónde vamos? Este libro pregunta y ayuda a preguntar, busca y ayuda a encontrar. Es obra de un gran jurista, a quien nada de lo humano le es ajeno, y está escrito en un lenguaje claro y eficaz: gracias a la maestría de su mano, las palabras de Zaffaroni vuelan más allá de las fronteras jurídicas y mas allá de todas las fronteras."

EDUARDO GALEANO.

Pois bem, escutem as palavras dos mortos.

Escutem as palavras dos vivos.

Escutem todas as palavras.

E, então, pensemos criticamente a questão criminal.

Então, pensemos criticamente o mundo.


Veja a Parte I aqui


Notas e Referências:

BATISTA, Nilo. A Lei como Pai/Law as Pater. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro: vol. 2 no.3, janeiro 2010, p. 20-38.

CORDEIRO, Patrícia. Em busca de linguagens perdidas: quando a resposta punitiva é um “cala a boca”. – Empório do Direito. http://emporiododireito.com.br/em-busca-de-linguagens-perdidas-quando-a-resposta-punitiva-e-um-cala-a-boca-por-patricia-cordeiro/

KROPOTKIN, Piotr. As Prisões. Tradução e diagramação: Barricada Libertária Campinas, 2012.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La Palabra de los Muertos. Conferencias de Criminologia Cautelar. Prólogo de Juan Gelman. Buenos Aires: Ediar, 2011.


 

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