A qualificação dos contratos pela causa concreta no direito brasileiro – Por Mauricio Mota

07/12/2016

Na qualificação de um contrato misto, quando nesse contrato se defrontam as obrigações decorrentes de diferentes tipos contratuais legais, a causa concreta, o interesse prático-social executado pelas partes, é o determinante na qualificação do contrato no Brasil.

Para procedermos à análise da importância da qualificação dos contratos pela causa concreta, torna-se necessário esclarecimentos acerca do conceito de causa, delimitando seu sentido. Parte-se da noção de causa como conceito diferenciador dos diversos tipos contratuais, como elemento de qualificação. Ressalte-se que, face à amplitude do tema, e por tratar-se de vexata quaestio no Direito brasileiro e alienígena, não temos aqui pretensão totalizante, senão somente explanar algumas das teorias que propõem a definição do conceito de causa, a fim de estabelecer sua importância no que concerne à qualificação dos contratos[1].

A identificação do elemento causal tem como escopo evitar que seja dada proteção jurídica a negócios sem relevância social. Uma vez determinada a causa, estabelece-se qual o efeito que as partes pretendiam alcançar quando da celebração do contrato, a partir daí, surge o regime jurídico aplicável ao mesmo.

Jean Domat, no século XVII, foi quem lançou as bases da teoria da causa, que seria o fundamento da obrigação, sendo requisito de validade de convenções. Segundo o referido autor, nos contratos sinalagmáticos, cada uma das obrigações encontra fundamento na obrigação que corresponde à outra parte. Mesmo nos contratos unilaterais, nos quais não há contraprestação, há uma entrega de coisa, o que fundamenta a obrigação. Desta forma, à exceção da doação pura, a obrigação do contratante se fundamenta na correspondente obrigação do outro, sendo esta a causa do contrato. Nesta, há uma mera liberalidade, identificando-se sua causa com o próprio motivo que a inspirou, qual seja, um mérito do donatário que fundamente a sua vinculação ou a simples vontade de realizar uma benesse[2].

Pothier, por seu turno, inclui a causa entre os elementos essenciais dos contratos, juntamente com o consentimento e o objeto e dedica um parágrafo especial à falta de causa no contrato. Quanto aos contratos a título oneroso, sustenta que a obrigação de uma das partes é o fundamento da obrigação da outra; no que concerne aos contratos gratuitos, afirma ser a intenção de liberalidade causa suficiente da obrigação, aproximando-se da teoria de Domat[3].

Referidos autores fazem parte da chamada corrente subjetiva da causa, consagrada no Code Napoleón, a qual determina que a causa nada mais é que o fundamento da obrigação contratual, isto é razão pela qual ela é contratada. Assim, a causa seria o motivo típico do contrato, entendimento que torna o elemento causal prescindível. Entretanto, tendo em vistas as insuficiências apresentadas por esta doutrina, surge a teoria objetiva da causa, que propõe uma ruptura radical com a concepção anterior, de forte cunho voluntarista. Parte-se do pressuposto que é a previsão legal de um comportamento - e não apenas a manifestação de vontade do sujeito em um determinado sentido - é a fonte geradora de efeitos jurídicos.

Todavia, apesar da tendência à objetivação do conceito de causa, a própria corrente objetiva diverge quanto a sua definição, conceituando-a de várias formas, dentre elas, a que obtém maior aceitação e difusão é a noção de causa como função econômico-social[4].

Na objetivação da causa do negócio jurídico sustenta-se que o ordenamento jurídico o toma em consideração e lhe dá relevância não em virtude da vontade individual, mas porque este representa interesse socialmente útil, digno de tutela jurídica[5].

A noção de causa seria a de função objetiva do tipo legal, isto é, a função que o contrato pretende concretizar como pertencente a determinado tipo. Nesse sentido, por ser uniforme para todos os negócios concretos pertencentes a um mesmo tipo contratual, serve como elemento diferenciador dos diferentes tipos. É a concepção bettiana de causa do contrato[6]. Com efeito, um negócio jurídico apenas será qualificado como pertencente a determinado tipo contratual se cumpre a função econômico-social que o caracteriza[7].

A teoria bettiana da causa como função econômico-social sofreu acerba crítica de Salvatore Pugliatti. Para Pugliatti não basta fazer referência a uma função genérica, sendo necessário examinar o negócio nos seus efeitos específicos concretos, de modo que a causa não deve ser identificada em uma função econômica ou social, mas unicamente na sua razão de ser jurídica, integralmente emergente do preceito legislativo que a reconhece[8].

Pugliatti propõe outra interpretação, na qual a causa seria a função jurídica do negócio, expressa pela síntese de seus efeitos jurídicos essenciais. Assim, a causa constitui a mínima unidade de efeitos do contrato: no mandato, seria a obrigação do mandatário de cumprir os atos jurídicos por conta do mandante, pois sem isto, não pode haver mandato[9].

Contemporaneamente a causa do contrato deve ser compreendida como causa em concreto e não é sinônimo da chamada função econômico-individual, porque não pretende dar  relevo ao dado psicológico das partes  (sinalizando um  retorno às  teorias  subjetivas), pois a razão concreta que  justifica o contrato  não  é  o  interesse  pessoal  de  cada  uma  das  partes,  sob  a  ótica  da  satisfação  da necessidade  do  indivíduo, modificável  de  sujeito  para  sujeito  e  de  caso  para  caso, mas  o interesse  social  que  o  contrato  singular  pretende  perseguir,  um  interesse  portanto  ainda econômico-social, porém perseguido não por um  tipo contratual pré-confeccionado, mas sim avaliado “no particular contexto de circunstâncias e  finalidades e  interesses no qual aquelas partes o programaram”[10].

Cumpre ressaltar que o ordenamento jurídico brasileiro – diferentemente do italiano, o francês e o espanhol - não erige a causa como elemento do contrato. O Código Civil de 1916 não a previa no artigo referente à validade dos atos jurídicos, fazia apenas menção à falsa causa[11]. O Código Civil de 2002 segue a mesma orientação, referindo-se apenas ao falso motivo como vício do contrato, desde que seja expresso como declaração determinante[12], não prevendo o elemento causal como requisito de validade[13].

Por fim, insta salientar que, em que pesem opiniões em contrário, não há que se falar em negócio jurídico sem causa em concreto, vindo sua falta a impedir a tutela do negócio a ser celebrado, isto é, que se produzam efeitos juridicamente válidos. Assim, em princípio, a relevância da causa é direta e imediata. Contudo, em alguns casos tal relevância é protraída, gerando os negócios abstratos, nos quais “a causa vem, por assim dizer, colocada temporariamente entre parênteses[14], ocorrendo uma relevância indireta desta.

Além disso, insta salientar que, na análise fática, o elemento causal pode ser fracionado em dois aspectos, sendo um abstrato e outro concreto. No que se refere à causa em sentido abstrato, esta corresponde ao conteúdo mínimo de um negócio a fim de que seja caracterizado como pertencente a determinado tipo contratual. A função concreta diz respeito aos efeitos efetivamente criados pelas partes, os quais devem ser analisados com cautela para fins de qualificação.  Desta forma, caminha-se no sentido da superação da qualificação meramente subsuntiva, ou seja, a mecânica adequação do fato à norma, propondo-se uma qualificação-interpretativa, a qual é perfeitamente compatível com o pensamento tipológico.

A causa do contrato deve ser compreendida como o interesse social que o contrato singular pretende perseguir, um interesse portanto ainda econômico-social, não um tipo contratual pré-confeccionado, mas sim avaliado “no particular contexto de circunstâncias e finalidades e interesses no qual aquelas partes o programaram[15].

São características dessa causa: a) é concreta, porque se verifica em cada caso em particular; b) é variável, porque pode ser diferente em cada negócio concreto suposto; c) não é suficiente examiná-la em seu momento genético, e sim ver a produção de seus efeitos[16].

Na análise para a qualificação de um contrato, embora os essentialia negotti sejam relevantes, é a verificação da compatibilidade entre a finalidade concreta do contrato e os preceitos da normativa a ser aplicada que autorizam a tutela jurídica. Como diz Perlingieri:

Em outras palavras, primeiro se deve realizar uma análise meticulosa do caso concreto (método casuístico); depois, em vez de subsumi-lo na fattispecie abstrata, ou em um tipo segundo o ordenamento referido se individua no seu âmbito a complexa normativa a ser aplicada, em modo que resulte mais razoável e adequado. [...] Trata-se de um preciso procedimento: somente com a consideração da fattispecie concreta em todas as suas particularidades – diferentemente da adoção do método da subsunção e da  recondução,  com  o  qual  se  acaba  por  cometer  violência  ao  caso  concreto  na tentativa de  inseri-lo  a  todo  custo no  esquema  típico  (ainda quando  aquele  esquema “lhe está apertado”, como um vestido confeccionado em série) – se está em condição de  colher  no  sistema  como  um  todo,  com  a  devida  sensibilidade  hermenêutica,  as regras e princípios mais adequados[17].

Na interpretação dos contratos, a causa em concreto é fundamental no processo de qualificação contratual na medida em que favorece a identificação das peculiaridades do contrato. Trata-se do elemento que o define o negócio, que serve para o diferenciar de qualquer outro negócio, típico ou atípico. Assim, o intérprete, para qualificar o contrato, deve cotejar a causa do contrato concreto com a causa abstrata prevista no âmbito dos tipos, individualizando o dito contrato em seu perfil próprio. Como expõe Celina Bodin de Moraes:

A  função  abstrata  releva  (...)  porque  dela  se  extrai  o  conteúdo mínimo  do  negócio, aqueles efeitos mínimos essenciais sem os quais não se pode, em concreto – ainda que assim se tenha idealizado –, ter aquele tipo, mas talvez um outro, ou mesmo nenhum. No exemplo da compra e venda,  se  falta o preço, de compra e venda não  se  tratará, mas,  talvez, de doação.  Já  a  função  concreta diz  respeito  ao  efetivo  regulamento de interesses  criado  pelas  partes  e  não  se  pode,  a  priori,  estabelecer  que  efeitos  são essenciais  e  quais  não  o  são,  naquele  particular  negócio.  Para  a  qualificação  do concreto  negócio  será  necessário  examinar  cada  particularidade  do  regulamento contratual  porque  uma  cláusula  aparentemente  acessória  pode  ser,  em  concreto,  o elemento  individualizador  da  função  daquele  contrato.  Supera-se,  desta  forma,  a técnica da  subsunção, da  forçada  inserção do  fato na norma e da premissa menor na premissa  maior,  obtendo-se,  como  resultado,  uma  qualificação-interpretação  mais compatível com a manifestação de vontade das partes[18].

Essa forma de qualificação dos contratos pela causa concreta recebe o beneplácito do Superior Tribunal de Justiça –STJ. Por exemplo, analisando a discussão sobre a incidência da Cofins nos contratos de locação de espaços em shopping centers interpretou acertadamente que, embora tal contrato aparentemente se enquadre no tipo contratual da locação de bens, não passível de incidência da Cofins, a causa concreta do contrato é o plano estratégico, o mix rentável do negócio shopping center e sua devida retribuição de tal prestação por um aluguel percentual. Como esse chamado “aluguel percentual” é na realidade uma parte do faturamento da loja, sobre o qual já incide a Cofins, ele não pode ser novamente tributado para que não se configure um bis in idem.

No caso, diante da previsão de que o fato gerador da Cofins é o “faturamento mensal” (CF, art. 195, I), ao qual expressamente escapa a figura da locação de bens (LC  70/91, art.  2º, CTN, art. 110), a empresa sustentava que a tributação daquele contrato violava os arts. 1.188 e 1.216 do CC1916, pois ele se enquadraria no tipo da locação de bens, e não da prestação de serviços. O STJ, ao analisar o caso, todavia, iniciou destacando a riqueza das possibilidades contratuais que orbitam o tipo da locação, mas com ele não se confundem, como nos apart-hotéis e shoppings, pois vêm acompanhados de serviços como limpeza, segurança, mensageiros, telefonia, promoções, associações de lojistas etc., casos nos quais, para efeitos tributários, são tratados pela prestação dominante no tema.

Nesta linha de identificar a função concreta que o diferencia do modelo padrão, afirmou o voto da relatora que “o aspecto mais interessante do shopping center e que o distingue como contrato atípico é o propósito principal: relação associativa entre empreendedor e lojistas, que põem em prática um plano estratégico que mistura produtos e serviços, com vista a um fim comum: rentabilidade pela venda de mercadorias, da qual participam ambos”.  Assim, constatou-se que, no caso específico desses contratos, o mecanismo próprio de remuneração é o “aluguel percentual”, o qual, por incluir parte do faturamento obtido pelo lojista nas suas próprias operações comerciais, já havia sofrido a incidência da Cofins e não poderia novamente ser tributado pela Cofins:

O  fato  gerador  da  COFINS  é  o  faturamento  mensal,  assim considerado a receita das vendas de mercadorias, de mercadorias e serviços e de serviços de qualquer natureza.

O  resultado  econômico  da  locação  de  coisas  ou  de  bens  escapa  da incidência da contribuição questionada, por não se enquadrar na tipificação do art. 2º da LC n. 70/1991, assim redigido:

A contribuição  de que  traía  o artigo  anterior,  será  de dois por cento  e  incidirá

sobre  o  faturamento  mensal,  assim  considerado  a  receita  das  vendas  de mercadoria, de mercadoria  e serviços  e de serviços  de qualquer  natureza.

Modernamente,  a  locação  de  bens  pode  vir  acompanhada  de prestação de serviços, o que sói acontecer com os apart hotéis e os shoppings, locação  que  também  dá  ensejo  a  serviços  diversos,  tais  como  limpeza, segurança,  mensageiros,  telefonia  e  ainda  promoções  coletivas,  filiação  a associações de lojistas, etc.

A questão que desponta de interesse para o Direito Tributário consiste em  saber  qual  a  classificação  que  se  dá  a  estes  contratos  que,  por  sua natureza,  são  um  misto  de  locação  e  de  serviços,  considerado doutrinariamente como contrato misto.

Sem  regulamentação  legal  específica,  são  tratados  pelas  regras  das prestações dominantes.

A  jurisprudência  desta  Corte  não  registra  precedente  sobre  o  tema, sendo esta, segundo pude pesquisar, a primeira vez que enfrenta esta Turma a questão.

Neste contrato atípico,  falsamente chamado de contrato de  locação, o traço marcante é a forma de remuneração, o chamado aluguel percentual pois, em  vez  de  pagar  quantia  fixa,  o  lojista  entrega  parte  do  valor  do  seu faturamento, sobre a qual já incide a COFINS.

O  aspecto  mais  interessante  do  shopping  center  e  que  o  distingue como  contrato  atípico,  é  o  propósito  principal:  relação  associativa  entre empreendedor  e  lojistas,  que  põem  em  prática  um  plano  estratégico  que mistura  produtos  e  serviços,  com  vista  a  um  fim  comum:  rentabilidade  pela venda de mercadorias, da qual participam ambos.

Com  efeito,  como  bem  destacou  o  Professor  Orlando  Gomes,  em magistral  artigo  publicado  na  Revista  do  Tribunais  (volume  576,  outubro  de 1983), no contrato de locação de "shopping center" o objetivo fundamental das partes  é  tirar  proveito  da  organização  do  empreendimento,  obtendo  ganhos mediante participação de ambos no sucesso comercial.

Dentro deste enfoque,  temos que o  faturamento do  lojista é obtido em decorrência  das  atividades  praticadas  pelo  empreendedor  do  shopping,  em verdadeira simbiose de atividades.

Na  realidade,  é  como  se  ambas  as  partes  empreendessem  esforços múltiplos  para  uma  finalidade  comum:  o  faturamento,  sobre  o  qual  é  paga  a COFINS pelos lojistas.

Dentro  desta  compreensão,  não  vejo  como  possa  ser  exigido  do empreendedor o pagamento da COFINS, porquanto os seus ganhos são, em parte, locação das lojas, atividade não ensejadora da exação, e, em parte, um percentual do faturamento, para o qual concorreu, prestando serviços.

(..)

A incidência da COFINS sobre a atividade econômica do administrador do "shopping center" vem a ser, no meu entendimento, um "bis in idem", o que não se pode admitir (Recurso Especial n.º 178.908/CE, Relatora: Ministra Eliana Calmon, DJ de 11.12.2000).

Vejamos então como na qualificação de um contrato misto, quando nesse mesmo contrato misto, se defrontam as obrigações decorrentes de diferentes tipos contratuais legais, a causa concreta, o interesse prático-social almejado e executado pelas partes, é o determinante na qualificação desse contrato no direito brasileiro.

Tradicionalmente, fala-se da complexidade de um contrato segundo a subjetividade, em razão da necessidade de se definir o comprometimento das pessoas situadas no mesmo pólo de um contrato.  Outras situações falam de complexidade segundo a volatilidade, quando há mais de uma manifestação da vontade. Mas há também a complexidade contratual segundo a objetividade, quando há mais de uma prestação acordada[19].

Quando a “ligação” (nexo) que reúne as prestações de um contrato objetivamente complexo nos conduz à recomposição de uma unidade implícita, não há que se falar em diversidade quanto a seu objeto. Por exemplo, se determinada empresa celebrou contrato para  viabilizar,  através de programas de  informática e uso de equipamentos especiais,  junto a uma empresa pública,  um  sistema  de  cobrança  mediante  o  uso  de  cartões  utilizados  pelos usuários  daquele  serviço  público e, além da obrigação de  desenvolver o  software e fornecer  os  equipamentos  especialmente  fabricados  por  ela  mediante  locação,  a empresa  prestadora  de  serviço  obrigou-se,  também,  à  manutenção  dos equipamentos cedidos, a unidade implícita do contrato é, e não poderia deixar de ser, a prestação do serviço de cobrança  mediante  o  uso  de  cartões.

Como bem coloca Francisco Paulo de Crescenzo Marino referindo-se à unidade do contrato misto (contrato objetivamente complexo que se caracteriza por conter elementos de mais de um tipo contratual):

O que garante a unidade do contrato misto é que os elementos dos diversos tipos contratuais se subordinam à mesma causa (fala-se em unidade de causa e em “causa mista”), ou, no dizer de Pontes de Miranda, subordinam-se “à especificidade preponderante” e ao “fim comum” do contrato[20].

O fim contratual, ou o “fim comum” a todos os elementos de um contrato complexo, se distribui pelos elementos que o compõem. Este fim contratual pode ou não ser um fato imponível unitário e indivisível como tal.

No caso da empresa responsável pelo sistema de cobrança do exemplo anterior, a finalidade comum tem sua síntese em um serviço unitário de cobrança de tarifas públicas. Vale dizer: não é possível seccionar o objeto, em prestações distintas e desligadas entre si. O fato é indivisível:  é tudo (cobrança eletrônica = programa de computador + locação de equipamentos específicos + manutenção) ou nada. Concretamente: o tomador não adquiriu três coisas distintas (software, locação e manutenção), do mesmo modo que o consumidor que comprou um sofá não recebe nota fiscal de venda da qual conste os produtos “madeira, espuma e couro”, haja vista que mercadoria é “sofá”. As partes que compõem a obrigação não possuem autonomia, antes dependem do todo que lhes dá razão de ser, vale dizer, sua funcionalidade.  Podem mesmo emprestar certa qualidade ao produto de que são partes (sofá de couro, cobrança eletrônica etc.), mas não têm autonomia.

O Supremo Tribunal Federal, fundado na percuciente lição de Orlando Gomes, analisando os contratos mistos, já consagrou há muito tempo que o que qualifica o contrato é sua causa concreta, ou seja, o fim objetivo almejado pelas partes:

O que caracteriza o contrato misto (ou complexo) é a coexistência de obrigações pertinentes a tipos diferentes de contratos, enlaçadas pelo caráter unitário da operação econômica, cujo resultado elas asseguram. Ele se distingue da união de contratos, que se caracteriza pela coexistência, num mesmo instrumento, de tais obrigações simplesmente justapostas, sem a amálgama da unidade econômica aludida. No caso de união de contratos, pode ser anulado ou rescindido um deles, sem prejuízo dos outros, enquanto que, em se tratando de contrato misto, o grau de síntese alcançado torna inseparáveis as partes ou elementos do negócio. Outrossim, cumpre-nos advertir que as regras principais a serem observadas, em relação ao contrato misto, são estas: ‘a) cada contrato se rege pela norma de seu tipo; b) mas tais normas deixam de ser incidentes quando se chocarem com o resultado que elas visam assegurar (STF, 1ª T, RE 79562-SP, rel. Min. Rodrigues Alckmin, v.u., 10.01.76, RTJ 77/884).

A causa concreta, o interesse social que o contrato singular pretende perseguir, é o determinante na qualificação de um contrato, quando em um mesmo contrato misto, se defrontam as obrigações decorrentes dos tipos contratuais da locação e da prestação de serviços. Como bem analisado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que, asseverou que o fim comum de um contrato misto é o fator determinante para que se possa decidir pela pertinência do protesto de certa duplicata, que não é admitido para contrato típico de locação:

Já agora, bem analisando os autos, os termos dos contratos celebrados e a prova pericial, convenço-me do acerto da sentença.

Sim, porque, embora a uma primeira análise, pareça que se entabularam contratos de locação, pura e simplesmente, o que se verificou após a instrução probatória foi que, na realidade, a ré, juntamente com a disponibilização de seu equipamento, prestou serviços de mão-de-obra e manutenção do maquinário em obra de responsabilidade da autora.

Está-se, a toda evidência, diante de CONTRATO MISTO, que encerra locação e prestação de serviços, com clara predominância da prestação de serviços. Tendo como norte esta realidade, analisando os contratos celebrados, que estão acostados às fls. 17/28 da ação cautelar, convenço-me de que a denominação do contrato não guarda relação com seu conteúdo.

Além de ser responsabilidade da locadora a manutenção preventiva e corretiva com peças de reposição, o preço foi estabelecido em razão do número de horas trabalhadas, o que caracteriza claramente a prestação de serviços. Ademais, conforme se depreende das provas documentais, a apelada, além de cobrar pela mão-de-obra, arcou com despesas previdenciárias dos funcionários encarregados de operar os equipamentos.

Fica evidente, pelo conjunto probatório dos autos, que a ré entregou os equipamentos locados acompanhados de funcionários seus, que seriam os operadores e executores dos serviços, de forma que se pode concluir que não ocorreu a simples locação de bens móveis, mas um típico contrato de prestação de serviços.

Ora, se o contrato de locação tem como marca a entrega de bens não fungíveis, por tempo determinado, para que o locatário dela faça uso, mediante retribuição, ficando obrigado a restituí-la no fim do prazo contratual, verifica-se que tais características não se reuniram no caso em testilha.

O que houve foi a utilização do equipamento sob o comando e operação de  um funcionário  da  apelada,  para  execução  de  obras  de responsabilidade da apelante, o que, sem dúvidas, caracteriza contrato de prestação de serviços.

Está claro que a apelante, sequer, teve o uso e o gozo do maquinário pertencente à apelada, pois essa manteve empregado seu em efetiva operação do bem, continuando consigo, pois, a posse e uso do equipamento.

Outra nota caracterizadora da prestação de serviços é o fato do contrato prever prorrogação mediante acordo entre as partes, evidentemente para atender às necessidades das obras em que os equipamentos seriam empregados.

Diante desta realidade, considerando-se que não há um simples contrato de locação, mas de um contrato de prestação de serviços, entendo autorizada a emissão de duplicata na forma do art. 20 da Lei nº 5.474/68.  (MINAS GERAIS, TJ. Processo 1.0024.02.881314-5/001 (1), Relator Des. Alberto Vilas Boas, 2006).

No caso em tela, a causa concreta do contrato, o negócio avençado pelas partes, é o serviço realizado por uma empresa (a prestadora) no canteiro de obras da outra (o tomador do serviço). Está é a causa, a razão de ser do contrato, independentemente do nomem iuris que foi dado ao contrato.  A causa concreta do contrato é o serviço porque a retribuição teve em conta a atividade (o fazer) e assim foi retribuída, sendo o tempo o elemento primordial em tela no contrato (o preço foi estabelecido em razão do número de horas trabalhadas). Além disso, a prestadora de serviço se responsabilizava inteiramente por toda a operação (a ré entregou  os  equipamentos  locados  acompanhados  de  funcionários seus,  que  seriam  os  operadores  e  executores  dos  serviços), bem como por toda atividade dos funcionários necessários para a tarefa (cobrou pela mão-de-obra e arcou com as despesas  previdenciárias  dos  funcionários  encarregados  de  operar  os equipamentos) e também por quaisquer falhas e problemas que pudessem vir a ocorrer (responsabilidade  da  locadora  pela manutenção preventiva e corretiva dos equipamentos com peças de reposição). Tudo a evidenciar a existência de um típico contrato de prestação de serviços, com clara predominância nele da prestação de serviço sobre quaisquer outras partes da operação complexa.

Concluindo, podemos entender que, a causa concreta de um contrato misto, quando nesse mesmo contrato, se defrontam as obrigações decorrentes de diferentes tipos contratuais legais,  é o interesse  social  que  o  contrato    pretende  perseguir (no caso do exemplo anterior, a causa concreta do contrato é o serviço porque a retribuição teve em conta a atividade [o fazer] e assim foi retribuída, sendo o tempo o elemento primordial em tela no contrato [o preço foi estabelecido em razão do número de horas trabalhadas]).

As partes do contrato querem possibilitar a prestação do serviço. Isso é claro na análise funcional dos contratos e se expressa nos seus itens. O tempo é o elemento primordial do contrato. Portanto, como já dito, na interpretação dos contratos, a causa em concreto é fundamental no processo de qualificação contratual na medida em que favorece a valorização das peculiaridades do contrato efetivamente firmado entre as partes. Trata-se do elemento que o define o negócio, que lhe é próprio e único e que serve para o diferenciar de qualquer outro negócio, típico ou atípico. Assim, o intérprete, para qualificar o contrato, deve cotejar a causa do contrato concreto com a causa abstrata prevista no âmbito dos tipos, individualizando o dito contrato em seu perfil próprio no contexto negocial.


Notas e Referências:

[1] Neste sentido, importante salientar o ensinamento de BESSONE, Darcy. Do contrato: teoria geral. 4. ed, São Paulo: Saraiva, 1997, p. 98., segundo o qual “a imprecisão do conceito de causa, problema doutrinário dos mais tormentosos e controvertidos, repercute na questão de saber se, em face da distinção entre os pressupostos e os elementos do contrato, ela deve incluir-se entre os primeiros ou entre os últimos, ou ainda, se deve excluir-se de qualquer das duas categorias”.

[2] DOMAT, Jean. Oeuvres complètes. Tome I. Les loix civiles dans leur ordre naturel. Partie I, livre I, section I, nº. 5 e 6. Paris: Firmin Didot Père et fils, 1828, p. 122/124.

[3] Veja-se a lição do eminente mestre: “Todo compromisso deve ter uma causa honesta. Nos contratos interessados, a causa do compromisso que contrata uma das partes está naquilo que a outra parte lhe dê, se comprometa lhe dar ou no risco pelo qual se responsabilize. Nos contratos de beneficência, a generosidade que uma das partes quer exercer para com a outra é uma causa suficiente do compromisso a que se compromete para com ela. Mas, quando um compromisso não tem causa, ou quando a causa pela qual foi contratado é uma causa falsa, o que é a mesma coisa, o compromisso é nulo, e também é nulo o contrato que a contém”. (POTIHER, Robert Joseph. Tratado das obrigações. Campinas: Servanda, 2000, p. 59).

[4] No entender de Paulo Barbosa de Campos Filho (O problema da causa no Código Civil Brasileiro. São Paulo: Max Limonad, p. 159): “Dentre os progressos realizados, importa salientar os da escola ‘objetiva’, que fêz da causa 'função social’ do negócio jurídico. Esta nova orientação, se não teve o condão de pacificar os espíritos, todavia permite considerar-se a ‘ causa’ não já como ‘elemento’, seja da obrigação, seja do contrato, seja do ato, ou do negócio jurídico, mas como expressão, em termos objetivos, do intento negocial próprio de todo ato, intento esse sempre realizável desde que conforme à ordem jurídica”.

Assim entendida,  a ‘causa’ se nos apresenta como a expressão de um princípio: o da só eficácia dos intentos negociais conformes aquela ordem. E é sob esse aspecto que a ‘causa’ se revela de particular utilidade, sobretudo como instrumento de caracterização do ilícito”.

[5] Este é o posicionamento Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado, t.3, 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, p.78), nos seguintes termos: “a causa é a função que o sistema jurídico reconhece a determinado tipo de ato jurídico, função que o situa no mundo jurídico, traçando-lhe a precisando-lhe a eficácia”.

[6] BETTI, Emilio. Causa del negozio giuridico. Novissimo Digesto Italiano. Torino: UTET, 1957, p. 35.

[7]“A causa do contrato identifica-se, então, afinal, com a operação jurídico-econômica realizada tipicamente por cada contrato, com o conjunto dos resultados e dos efeitos essenciais que, tipicamente, dele derivam, com sua função econômico-social, como frequentemente se diz. Causa de qualquer compra e venda é, assim, a troca da coisa pelo preço; causa de qualquer locação é a troca entre entregas periódicas de dinheiro e concessão do uso de um bem (...). Acolhida esta noção de causa do contrato, resultam claros os nexos que a ligam ao conceito de tipo contratual” (ROPPO, Enzo. O contrato. op. cit., p. 197)

[8] PUGLIATTI Salvatore. Nuovi  aspetti del problema della  causa dei negozi giuridici. Diritto Civile: Metodo – Teoria – Pratica. Milano: Giuffrè, 1951, p. 90.

[9] PERLINGIERI, Pietro. Manuale di diritto civile. 5. ed. Napoli: ESI, 2005, p. 369.

[10] ROPPO, Vincenzo. Il contratto. Milano: Giuffrè, 2001, p. 364.

[11] Cf. Art 82: “A validade do ato jurídico requer agente capaz (art. 145,I), objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei (arts. 129, 130 e 145)”.

Cf Art. 90: “Só vicia o ato a falsa causa, quando expressa como razão determinante ou sob forma de condição”.

[12] Cf art. 140: “O falso motivo só vicia a declaração de vontade quando expresso como razão determinante”.

[13] Cf Art. 104: “A validade do negócio jurídico requer:

I- agente capaz;

II- objeto lícito, possível, determinado ou determinável;

III- forma prescrita ou não defesa em lei”.

[14] ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Almedina, 1998, p. 202.

[15] ROPPO, Vincenzo. Il contratto. Milano: Giuffrè, 2001, p. 364.

[16] LORENZETTI, Ricardo Luis. Tratado de los contratos. Parte General. Santa Fé: Rubinzal Culzoni Editores, 2004, p. 412/413.

[17]PERLINGIERI, Pietro. In  tema di  tipicità e atipicità nei contratti. Il diritto dei contratti  fra persona e mercato: problemi del diritto civile. Napoli: ESI, 2003, p. 397-398.

[18] MORAES, Maria Celina Bodin de. A causa dos contratos. in: Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: PADMA, vol. 21, pp. 95-119, jan./mar. de 2005, p. 108.

[19] MARINO, Francisco Paulo de Crescenzo. Contratos coligados no Direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 110.

[20] MARINO, Francisco Paulo De Crescenzo. op. cit., p. 112.


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