A mítica do “juiz Hércules” de Dworkin na solução dos casos difíceis (hard cases): Fábula ou esforço interpretativo? – Por Cristiano Botelho Alves

11/05/2015

Existe um ditado na minha terra natal que diz o seguinte: “Quando um índio muda de pago, muda de sorte!” Para quem não o conhece, tenho o dever de registrar que o “índio” é o homem campeiro, já a expressão “pago” quer dizer o seu lugar ou lar (também chamado de Querência) e, assim fica fácil entender que o homem que muda de lugar, muda também de sorte.

Por certo que a intenção não é a de adentrar em discussões acerca da mudança de lugar ou de sorte, mas apenas utilizar a referida expressão para estabelecer (por analogia) uma conexão com a mudança do estado de percepção do magistrado (colegiado) diante de casos de difícil solução (hard cases).

Dworkin, expoente da jusfilosofia oferece em sua obra “Império do Direito” a edificante teoria do Juiz Hércules, que traz em seu bojo a incumbência de verificar o delito incomum através de princípios que alicercem uma coerente solução. É sem dúvida o trabalho hercúleo que exige do intérprete um capacidade sobrelevada para sair de uma condição de interpretação dita “normal”, com vistas a aproximar-se o mais perto possível daquilo que podemos classificar como justo.

Antes de adentrar na figura do “magistrado Hércules”, necessário e importante entender a personagem mitológica possuidora de força sobre-humana que serve de pano de fundo para compreender os aspectos que auxiliarão o magistrado naquilo que pode vir a ser um sentido de integridade na sua decisão.

Hércules sem dúvida foi um dos maiores, senão o maior herói da mitologia grega. Filho de Zeus (Deus dos deuses) em união com a mortal Alcmena, que era esposa de Anfitrião.

De acordo com a história, Zeus aproveitou-se do fato que Anfitrião uma vez ausente de seu lar, disfarçou-se como o próprio Anfitrião e assim, do ato sexual com Alcmena, gerou-se Hércules.

Hera, a esposa de Zeus, enraivescida com a traição, enviou duas serpentes para matar Hércules ainda bebê. Ocorreu que Hércules, em seu berço já demonstrou sua descomunal força estrangulando-as com as próprias mãos.

Em fase adulta, Hércules foi novamente hostilizado por Hera, o que veio a provocar um devastador ataque de fúria que teve como consequência a morte de sua esposa e seus três filhos.

Como reprimenda ao crime cometido, o Oráculo de Delfos[1] o penalizou com doze arriscadas tarefas. Essas tarefas são conhecidas como os “Doze trabalhos de Hércules[2]”.

Da sua indômita bravura, Hércules realizou todos os seus trabalhos e ao fim, redimiu-se por ter matado sua família. Reza a lenda que tempos após, casou-se com Dejanira e num golpe lancinante e inesperado do destino, esta  veio a lhe matar.

Na condição de imortal, Hércules foi transladado para o Olimpo, onde veio a se casar com a deusa Hebe – símbolo da juventude.

Ao que pertence à Fábula e o que se pode utilizar no Judiciário, urge estabelecer um ponto de contato entre a limitação do mito e a transcendência do homem, até para que se possa entender a relevância acerca daquilo que se pode extrair da figura do “Juiz Hércules”.

Dworkin (2007, p. 286) idealiza essa figura mítica possuidora de virtudes, tais como paciência, sabedoria e habilidade sobre-humana, devendo ser cônscio e cumpridor de suas responsabilidades. E neste intento, aceita o direito como integridade.

De acordo com a visão de Wayne Morrison, a intenção de Dworkin acerca do Juiz Hércules é a de um indivíduo voltado para as questões globais que envolvem o ser humano. Ou seja, deve o magistrado investido do poder hercúleo, analisar não só pelo regramento estabelecido, mas também sob (e através) do manto constitucional, a fim de claro, formar sua convicção.

Assim, expõe Morrison:

Na reta disposição do termo seria um juiz ideal, com intenção de elaborar teorias políticas que poderiam servir como justificações do conjunto de regras constitucionais que são expressamente relevantes ao problema. Se duas ou mais teorias se ajustarem, mas apresentarem resultados contrastantes para o caso -, Hércules deve se voltar para o conjunto remanescente de regras, práticas e princípios constitucionais para criar uma teoria política para a Constituição como um todo (MORRISON, 2006, p. 508).

Parece ser algo óbvio que fica mais confortável trabalhar com o direito como integridade no próprio contexto da Common Law, o que por consequência parece exigir do magistrado um peculiar protagonismo na cadeia do direito consuetudinário.

Aliás, Dworkin (2007, p. 286) trabalha com essa ideia e ainda acrescenta acerca desse magistrado numa questão de danos morais:

Ele sabe que outros juízes decidiram casos que, apesar de não exatamente iguais ao seu, tratam de problemas afins; deve considerar as decisões deles como parte de uma longa história que ele tem de interpretar e continuar, de acordo com suas piniões sobre o melhor andamento a ser dado à história em questão. (Sem dúvida, para ele a melhor história será a melhor do ponto de vista da moral política, e não da estética)[3].

Por mais que se possa entender que o exercício de interpretar é o aspecto mais relevante na função do aplicador da lei, é possível perceber que este operador do direito é efetivamente um refém da cultura do momento histórico local.

Na construção desta figura mítica de Dworkin, o magistrado absorve a situação incontroversa em sua jurisdição e, ao inspecionar os casos de difícil solução – hard cases – constrói teses de tal modo que justifique as decisões anteriores proferidas no tribunal.

A esse respeito, Dworkin acrescenta em sua obra “Levando os Direitos a sério”:

Em seu papel, Hércules deverá não só desenvolver as possíveis teorias capazes de justificar os diferentes aspectos do sistema, mas também testá-las, contrastando-as com a estrutura institucional mais ampla, sendo que, “quando o poder de discriminação desse teste estiver exaurido, ele deverá elaborar os conceitos contestados que a teoria exitosa utiliza” (DWORKIN, 2007, p.168)

Em trabalho anterior, demonstrou-se em casos tais o compromisso de reconhecimento com a moralidade política, princípio este que deveria não só ser levado em conta no momento da aplicação do direito, bem como deveria ter morada fixa no processo de formação de convicção daquele que diz o direito.

Nesta ótica, mesmo que o “Juiz Hércules” tenha compromisso com a moralidade política, também o tem com a justiça e a equidade, de tal sorte que sua decisão não deve ser exclusivamente política.

Em tese, é neste ponto que se encontra o momento mais delicado da utilização da referida teoria para a solução de casos que se demonstram insolucionáveis, uma vez que é no momento da busca por argumentos ensejadores da decisão, que o “Juiz Hércules” não deve jamais esquecer que são os legisladores os possuidores de prerrogativa sobre questões puramente políticas.

Portanto, questões de cunho exclusivamente político não devem ser vistas como sendo daquele que diz o direito. De tal modo que sua busca é por aspectos que lhe pareçam identificáveis do ponto de vista da moralidade política pertences a todo indivíduo, considerando é claro, a conduta delitiva do mesmo.

Um aspecto curioso (e interessante!) que tem relação com Domitius Ulpianus, célebre jurista romano que eternizou o jargão “dar a cada um o que é seu de direito”, sendo contemporâneo de Sócrates, distante num espaço de tempo de quase 2.000 anos e com tanta similaridade do conceito de Ronald Dworkin, é sem dúvida uma demonstração do que deve ser a construção dos elementos formadores da decisão.

Dworkin incorre nesta questão:

Assim, a unidade interpretativa necessária à construção de um romance em cadeia também é requisitada na interpretação jurídica, e isto só é possível porque pelo direito como integridade, “o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade, e o devido processo legal adjetivo” (DWORKIN, 2007, p. 291). Desta forma, será possível, que “a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as mesmas normas” (DWORKIN, 2007, p. 291).

Entretanto, imperioso é trazer a lume que a interpretação que Dworkin preconiza com sua personagem mitológica, não é a intepretação livre e deliberada do magistrado, mas aquela que molda e exprime uma construção jurídica plausível e de acordo com o texto legal.

Neste diapasão da teoria dworkiana é necessário atentar-se que o juiz não inventará algo novo, mas irá adequar o melhor possível dentro da legislação em vigência. Sem dúvida, algo que o coloca muito próximo da eficaz e justa prática social.

O que se vê implicitamente na figura quase hermética de Dworkin é a capacidade que esse “novo juiz” terá que ter para visualizar este novo cenário comum em que o indivíduo se encontra, e consequentemente o seu respectivo direito.

Distoa com o conceito de força corpórea como na mítica história, mas efetivamente usa uma descomunal força dos sentidos ao que a realidade apresenta e técnica apurada a (e com o) que o ordenamento propõe.

É um papel que se afigura desafiador, mas é o inescapável propósito a todo aquele que interpreta o direito, mais que isso, em tais condições encontra-se embutida a responsabilidade de oferecer mais proposições do que exposições, conforme Cárcova expõe que “na atualidade se encurtaram tanto as distâncias entre o direito e as esferas políticas e econômicas da sociedade, sendo os juízes e os promotores os atores principais deste novo drama social” (Cárcova,1996, p.164).

O modelo de Hércules é mais investigação do que propriamente constatação, explica-se assim que, busca o mítico juiz perscrutar até onde aquele comando pode chegar. Ou seja, efetivamente o quê determinada lei aos olhos do princípio da integridade pode fazer pelo direito do indivíduo ou da coletividade.

É nesse ponto fulcral que Dworkin defende:

O método de Hércules não leva em conta o importante princípio, firmemente enraizado em nossa prática jurídica, de que as leis devem ser interpretadas não de acordo com o que os juízes acreditam que iria torná-las melhores mas de acordo com o que pretendiam os legisladores que realmente  as adotaram. Suponhamos que Hércules decida, depois de ter levado em conta tudo que seu método interpretativo recomenda , que a lei é melhor se entendida  que não concede ao ministro o poder de interromper projetos muito dispendiosos e quase concluídos. Os congressistas que a promulgaram podem ter pretendido dar ao ministro exatamente aquele poder. Em tais circunstâncias, nossa prática jurídica, baseada em princípios democráticos, insiste em que Hércules se submeta à intenção deles, e não a seu ponto de vista diferente[4].

Dworkin espera do seu modelo de Juiz um ato de coerência traduzido pela percepção da realidade que cerca o corpo social e a individualidade de cada um em sintonia com os comandos legais. Ledo engano da parte daquele que entende que essa edificante teoria está alicerçada em atos de heroísmo. O que no máximo extrai-se como concreto da mitológica figura é o simbolismo de seu hercúleo esforço.

Da fábula, fica a mensagem emblemática de que sua decisão é poderosa, tanto que define os rumos individuais e coletivos da nação, por outro lado lhe confere a responsabilidade de dizer o direito, pautado obviamente pelos princípios da integridade e da moral, afim de proferir decisões mais justas possíveis.


Notas e Referências:

CÁRCOVA, Carlos María. Direito, política e magistratura. Tradução de Rogério Viola Coelho, Marcelo Ludwig Dornelles Coelho. São Paulo, Ltr, 1996.

DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução Luis Carlos Borges(revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios; revisão de tradução Silvana Vieira) – 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2007.

_________, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

INFOESCOLA (Site) - Página: Mitologia - Mitologia Grega – Texto: Hércules – Tais Pacievitch. Disponível em <http://www.infoescola.com/mitologia-grega/hercules/>  acesso em 21 nov.2014.

John Hale, Jelle de Boer, Jeff Chanton e Henry Spiller. - A fonte do poder, no oráculo de Delfos. Disponível em:        <http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/a_fonte_do_poder_no_oraculo_de_delfos.html> acesso em 19 nov. 2014.

MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

[1] John Hale, Jelle de Boer, Jeff Chanton e Henry Spiller. - A fonte do poder, no oráculo de Delfos.- O templo de Apolo, incrustado na fascinante paisagem montanhosa de Delfos, abrigava o poderoso oráculo e era o mais importante local religioso do antigo mundo grego. Os generais buscavam conselhos do oráculo a respeito de estratégias de guerra. Os colonizadores procuravam orientação antes de suas expedições para a Itália, Espanha e África. Os cidadãos consultavam-no sobre investimentos e problemas de saúde. As recomendações do oráculo emergem de forma notável nos mitos. Disponível em:        <http://www2.uol.com.br/sciam/reportagens/a_fonte_do_poder_no_oraculo_de_delfos.html> acesso em 19 nov. 2014.

[2] 1. Matar o leão de Neméia – Hércules o estrangulou. 2. Destruir um monstro de sete cabeças que cuspia fogo. – o monstro era hidra de Lerna, que Hércules matou. 3.Capturar a corça de Gerínia. - Hércules a capturou viva, sendo que ela tinha chifres de ouro e pés de bronze. 4. Acabar com um javali selvagem gigantesco. – Hércules capturou vivo o javali de Herimanto. 5. Limpar em um só dia o curral do rei Augeasos. – Hércules limpu o estábulo que já não havia sido limpo nos últimos trinta anos, e no qual havia trrês mil bois. 6. Acabar com as aves do lago Estinfale. Hércules matou as aves antropófagas dos pântanos com flechas envenenadas. 7. Capturar um touro louco na ilha de Creta – Hércules capturou o touro vivo, apesar do mesmo lançar chamas pelas narinas. 8. Eliminar as éguas do rei da Trácia – Hércules capturou as éguas antropófagas de Diomedes,domando-as. 9. Roubar o cinto de ouro da rainha Hipólita – Hércules conseguiu, após longas batalhas, obter o cinturão de Hipólita, rainha das guerreiras amazonas. 10. Capturar os bois selvagens de Gerião, da ilha de Eritéia – Hércules capturou o rebanho de bois vermelhos, após ter matado Gerião, que tinha três corpos. 11. Roubar as maçãs douradas das ninfas no jardim das Espérides – Hércules recuperou as três maçãs de ouro do jardim, por intermédio de Atlas. 12. Capturar o cão de três cabeças Cérbero, guardião dos portões do inferno – Hércules capturou o cão, que além das três cabeças, tinha cauda de dragão e pescoço de serpente. Site: InfoEscola - Mitologia - Mitologia Grega – Texto: Thais Pacievitch – Disponível em <http://www.infoescola.com/mitologia-grega/hercules/>  Acesso em 21 nov. 2014.

[3] Dworkin, Ronald. O Império do Direito. Tradução Luis Carlos Borges(revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios; revisão de tradução Silvana Vieira) – 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 286.

[4] DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução Luis Carlos Borges(revisão técnica Gildo Sá Leitão Rios; revisão de tradução Silvana Vieira) – 2ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.378.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Hercules vs. Zeus (269/365) // Foto de: JD Hancock // Sem alterações

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