A função social da propriedade em uma decisão paradigmática do Superior Tribunal de Justiça – STJ – Por Mauricio Mota

28/06/2017

A função social da propriedade é um dos temas tormentosos do direito civil. Rios de tinta já foram gastos para tentar definir os contornos do que seria essa função social. Sendo o nosso um sistema jurídico de viés eminentemente voluntarista, centrado no instituto do direito subjetivo, a função social da propriedade aparece primordialmente como uma limitação externa ao direito, mais do que algo que seja inerente à estrutura do próprio direito.

O presente texto procura, a partir de um acórdão do Superior Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, em que se reconheceu a prevalência da posse com função social sobre a propriedade sem função social na Favela do Pullman, em São Paulo, discutir os fundamentos teóricos da função social da propriedade, tal como esta vem estabelecida na Constituição da República, verificando em que medida e sob que argumentos a propriedade obriga.

A mudança cada vez mais vertiginosa das relações sociais e dos processos produtivos acarreta a rápida obsolescência das regras fixas, a reger realidades que já se transmudaram e não se compatibilizam mais à previsão legal.

Um caso paradigmático para a fixação das balizas do que seriam os fundamentos teóricos do direito de propriedade é o ocorrido na favela do Pullman, em São Paulo, em que o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou que, naquele caso, haveria uma prevalência da posse com função social sobre a propriedade sem função social, decisão posteriormente confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça e transitada em julgado[1].

Na hipótese se propôs uma ação de reivindicação para obter a desocupação de vários lotes de terreno urbano ocupados, nos quais foram erguidas habitações e realizadas benfeitorias para fins de moradia. Eram objetos do direito de propriedade reivindicado nove lotes situados em uma favela consolidada, a chamada Favela do Pullman, cuja ocupação fora iniciada vinte anos antes. Esses terrenos estavam destinados originalmente para loteamento - Loteamento Vila Andrade - inscrito em 1955, com previsão de serviços de luz e água. Não se aplicava a esta situação jurídica a usucapião especial urbana porque, quando se instaurou a nova ordem constitucional, a ação reivindicatória já estava proposta havia três anos. No caso em questão, o juiz deveria analisar a demanda com fundamento no Código Civil de 1916, em vigor à época. Não podendo excepcionar esgrimindo a futura usucapião especial, a lógica jurídica estritamente civil obrigou o juiz a emitir uma sentença para ordenar a desocupação do imóvel, somada ao pagamento relativo à indenização e sem que os destinatários tivessem o direito a transacionar as obras e melhoria que haviam realizado nos terrenos.

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, não obstante, afastando-se do esquema jurídico civilístico tradicional, reformou a sentença e deu ganho aos apelantes, argumentando:

“Loteamento e lotes urbanos são fatos e realidades urbanísticas. Só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada, por força de uma certa erosão social deixam de existir como loteamento e como lotes.

A realidade concreta prepondera sobre a 'pseudo realidade jurídico-cartorária'. Esta não pode subsistir, em razão da perda do objeto do direito de propriedade. Se um cataclisma, se uma erosão física, provocada pela natureza, pelo homem ou por ambos, faz perecer o imóvel, perde-se o direito de propriedade.

É o que se vê do art. 589 do Código Civil, com remissão aos arts. 77 e 78.

Segundo o art. 77, perece o direito perecendo o seu objeto. E nos termos do art 78, I e III, entende-se que pereceu o objeto do direito quando perde as qualidades essenciais, ou o valor econômico; e quando fica em lugar de onde não pode ser retirado.

No caso dos autos, os lotes já não apresentam suas qualidades essenciais, pouco ou nada valem no comércio; e não podem ser recuperados, como adiante se verá.

É verdade que a coisa, o terreno, ainda existe fisicamente.

Para o direito, contudo, a existência física da coisa não é o fator decisivo, consoante se verifica dos mencionados incisos I e III do art. 78 do CC. O fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a uma finalidade viável, jurídica e economicamente.

Pense-se no que ocorre com a denominada desapropriação indireta. Se o imóvel, rural ou urbano, foi ocupado ilicitamente pela Administração Pública, pode o particular defender-se logo com ações possessórias ou dominiais. Se tarda e ali é construída uma estrada, uma rua, um edifício público, o esbulhado não conseguirá reaver o terreno, o qual, entretanto, continua a ter existência física. Ao particular, só cabe ação indenizatória.

Isto acontece porque o objeto do direito transmudou-se. Já não existe mais, jurídica, econômica e socialmente, aquele fragmento de terra do fundo rústico ou urbano. Existe uma outra coisa, ou seja, uma estrada ou uma rua, etc. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel.

Por outras palavras, o ius reivindicandi (art. 524, parte final, do CC) foi suprimido pelas circunstâncias acima apontadas. Essa é a doutrina e a jurisprudência consagradas há meio século no direito brasileiro.”

Prossegue o acórdão afirmando que:

No caso dos autos, a retomada física é também inviável.

O desalojamento forçado de trinta famílias, cerca de cem pessoas, todas inseridas na comunidade urbana muito maior da extensa favela, já consolidada, implica uma operação cirúrgica de natureza ético-social, sem anestesia, inteiramente incompatível com a vida e a natureza do Direito.

É uma operação socialmente impossível.

E o que é socialmente impossível é juridicamente impossível.

(..) Por aí se vê que a dimensão simplesmente normativa do Direito é inseparável do conteúdo ético-social do mesmo, deixando a certeza de que a solução que se revela impossível do ponto de vista social é igualmente impossível do ponto de vista jurídico.

9 - O atual direito positivo brasileiro não comporta o pretendido alcance do poder de reivindicar atribuído ao proprietário pelo art. 524 do CC.

A leitura de todos os textos do CC só pode se fazer à luz dos preceitos constitucionais vigentes. Não se concebe um direito de propriedade que tenha vida em confronto com a Constituição Federal, ou que se desenvolva paralelamente a ela.

As regras legais, como se sabe, se arrumam de forma piramidal.

Ao mesmo tempo em que manteve a propriedade privada, a CF a submeteu ao princípio da função social (arts. 5º, XXII e XXIII; 170, II e III; 182, 2º; 184; 186; etc.).

Esse princípio não significa apenas uma limitação a mais ao direito de propriedade, como, por exemplo, as restrições administrativas, que atuam por força externa àquele direito, em decorrência do poder de polícia da Administração.

O princípio da função social atua no conteúdo do direito. Entre os poderes inerentes ao domínio, previstos no art. 524 do CC (usar, fruir, dispor e reivindicar), o princípio da função social introduz um outro interesse (social) que pode não coincidir com os interesses do proprietário.

(..) Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos.

10 - No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e por seus antecessores, de forma anti-social. O loteamento - pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicandos e suas imediações - ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos; não foram implantados equipamentos urbanos; em 1973, havia árvores até nas ruas; quando da aquisição dos lotes, em 1978⁄9, a favela já estava consolidada. Em cidade de franca expansão populacional, com problemas gravíssimos de habitação não se pode prestigiar tal comportamento de proprietários.

O ius reivindicandi fica neutralizado pelo princípio constitucional da função social da propriedade. Permanece a eventual pretensão indenizatória em favor dos proprietários, contra quem de direito.

O Superior Tribunal de Justiça, referendando a decisão da segunda instância paulista, considerou que o artigo 524 do Código Civil de 1916 tinha de ser interpretado em consonância com os artigos 589, 77 e 78 do mesmo Código, os quais prevêem que se perde a propriedade imóvel pelo abandono, arrecadando-se esse como bem vago, passando ao domínio do Estado em que se achar; e que perece o direito, perecendo seu objeto, entendendo-se que pereceu o objeto quando este perde suas qualidades essenciais ou seu valor econômico.

Entendeu aquele Tribunal que, quando do ajuizamento da ação reivindicatória, era impossível reconhecer, realmente, que os lotes ainda existiam em sua configuração original, em face do abandono, desde a criação do loteamento. Deste modo, perdida a identidade do bem, o seu valor econômico, a sua confusão com outro fracionamento imposto pela favelização, resultava então a impossibilidade de sua reinstalação como bem jurídico no contexto atual, sendo o caso, indubitavelmente, de perecimento do direito de propriedade. Considerou ainda o Superior Tribunal de Justiça que, embora o art. 589, parágrafo 2º do Código Civil de 1916, falasse em “arrecadação do bem vago” em proveito do Estado, esse procedimento formal cederia à realidade fática em proteção aos posseiros. Na prática, considerou o Tribunal que desapareceu a propriedade dos autores da reivindicatória, subsistindo tão-somente a possibilidade de, porventura, uma pretensão indenizatória contra eventuais terceiros obrigados não participantes da demanda.

Como é corrente nas decisões dos Tribunais, o importante acórdão não discorre sobre aquilo que está implícito na decisão: uma nova teoria da proteção possessória que é o coerente desenvolvimento de uma nova teoria da posse na qual a valorização do elemento subjetivo contribui para a teorização de uma autonomia da posse em relação à propriedade. A posse, como instituto autônomo, não dependente da propriedade (como imaginava Ihering em sua teoria “objetiva”), mas responde às novas exigências sociais, criando uma janela através da qual o fato vem reconhecido no ordenamento e valorado em relação à exigência existencial do indivíduo. O acórdão, intuindo não obstante essas considerações sociais e existenciais, aferra-se ao formalismo da perda da realidade jurídica do loteamento e, por decorrência, a própria perda do objeto do direito de propriedade pelo abandono, considerando-se que perece o direito quando perecem as qualidades ou o valor econômico do objeto.

Entretanto, as perguntas que devem ser feitas, para a plena inteligibilidade do decisum, são aquelas relativas aos fundamentos teóricos da função social da propriedade. A primeira delas é a concernente a se saber se existe um direito dos homens à apropriação em comum dos bens exteriores, sem especificação de direito de propriedade particular por parte de indivíduos, famílias ou grupos, ou seja, se os bens exteriores devem se destinar a uma finalidade comum. O acórdão quer fazer crer que sim, ao dispor que, para o direito, a existência física da coisa não é o fator decisivo, mas sim que a coisa seja funcionalmente dirigida a uma finalidade viável, jurídica e economicamente. Exemplifica ao dizer que, na desapropriação indireta, se o imóvel é ocupado pela Administração Pública, mesmo que ilicitamente, e ali é construída uma estrada, uma rua, um edifício público, não é possível ao particular reaver mais o terreno, porque ali ele foi destinado a uma finalidade coletiva, cabendo a este tão-somente o direito à indenização. O objeto do direito transmuda-se. Não existe mais, jurídica, econômica e socialmente, aquele fragmento de terra do fundo rústico ou urbano. Existe uma outra coisa, ou seja, uma estrada ou uma rua, etc. Razões econômicas e sociais impedem a recuperação física do antigo imóvel. O ius reivindicandi impossibilita-se.

Analogamente, se um terreno deixa de ser utilizado pelo proprietário por mais de 20 anos e é ocupado por trinta famílias que aí moram, valorizam-no pelo trabalho e realizam benfeitorias, deixa de existir como realidade jurídica:

Loteamento e lotes urbanos são fatos e realidades urbanísticas. Só existem, efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela consolidada, por força de uma certa erosão social deixam de existir como loteamento e como lotes.

A realidade concreta prepondera sobre a 'pseudo realidade jurídico-cartorária'. Esta não pode subsistir, em razão da perda do objeto do direito de propriedade.

Caracterizado que a finalidade comum é ínsita ao direito de propriedade, a pergunta a ser respondida a seguir é a de que, sendo a primeira premissa verdadeira, de que os bens exteriores são destinados aos homens em comum, quais são os fundamentos pelos quais é lícito possuir as coisas como próprias? O acórdão parece indicar que determinada forma de uso não legitimaria o direito à propriedade:

Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma, conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos.

No caso dos autos, o direito de propriedade foi exercitado, pelos autores e por seus antecessores, de forma anti-social. O loteamento - pelo menos no que diz respeito aos nove lotes reivindicandos e suas imediações - ficou praticamente abandonado por mais de 20 (vinte) anos; não foram implantados equipamentos urbanos.

Por outro lado, outra forma de atuação sobre a coisa legitimaria a sua apreensão como própria:

No caso dos autos, a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É uma ficção.

Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem vida própria, está, repita-se dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento hoje só tem vida no papel.

Respondidas essas indagações, deve-se esclarecer se tais premissas aplicar-se-iam a toda sorte de bens ou somente àqueles que não fossem bem administrados, supérfluos ou que, por qualquer razão, pela extensão ou pelo mau uso, prejudicarem a outrem.

Deste modo, resumindo o anteriormente dito, o esclarecimento acerca de quais são os fundamentos teóricos da função social da propriedade passa pela resposta a esses quatro questionamentos: a) existe uma função social dos bens?; b) existe um direito dos homens à apropriação em comum dos bens exteriores, sem especificação de direito de propriedade particular por parte de indivíduos, famílias ou grupos, ou seja, os bens exteriores devem se destinar a uma finalidade comum?; c) se os bens exteriores são destinados aos homens em comum, quais são os fundamentos pelos quais é lícito possuir as coisas como próprias?; d) válidas as duas afirmativas anteriores, essas assertivas se aplicam a toda sorte de bens ou somente àqueles que não fossem bem administrados, supérfluos ou que, por qualquer razão, pela extensão ou pelo mau uso, prejudicarem a outrem?

A propriedade, direito subjetivo por excelência na época contemporânea, é uma construção social. Construção que se expressa na vitória dos movimentos revolucionários liberais que culminaram com a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, de 4 de julho de 1776, e com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, na França, em 26 de agosto do mesmo ano. Neles triunfa a ideia de propriedade como direito subjetivo, fruto maior da liberdade do homem. Mas também essa propriedade, culminante e absoluta nos Oitocentos, de características sumamente individualísticas, tem de se conformar à nova realidade social, na qual a irrupção das necessidades de uma sociedade de massas hipercomplexa torna necessárias mudanças profundas nesse direito. Não há que se falar mais em propriedade, mas sim em propriedades (cada qual com a diversidade de sua função):

Falar em propriedades significa, como ensina o mestre Paolo Grossi, recusar a absolutização da propriedade moderna, produto histórico de uma época, e, com isso, recusar a ideia de um fluxo contínuo e ininterrupto na história jurídica. A propriedade, ‘modelo antropológico napoleônico-pandectista’, consagração de uma visão individualista e potestativa, é apenas uma dentre as múltiplas respostas encontradas, nas múltiplas experiências jurídicas do passado e do presente, à eterna questão dos vínculos jurídicos entre homem e coisas. O termo singular, abstrato, formal, é inadequado para descrever a complexidade das múltiplas formas de apropriação da terra, que antecedem a formulação unitária, correspondente ao período das codificações.

Clavero ilustra, sob o paradigma da ‘antropologia dominical’, a pluralidade proprietária anterior à Revolução Francesa, e o inconveniente da projeção de nosso padrão unitário a tal realidade...

Nesta antropologia dominial são variadas as formas e as funções dos ‘domínios’, que não encontram correspondência no hodierno padrão da propriedade como direito subjetivo por excelência, arraigada em nossa cultura jurídica.

Não poderia ser de outro modo, num ordenamento que ainda desconhecia uma formulação unitária do direito subjetivo. O termo jus, matriz do direito subjetivo iluminista, aparece nos textos romanos com significados diversos, por vezes mesmo em contraposição a dominium. Ius refere-se ao objeto da justiça (às leis naturais, civis, feitos do pretor), à arte do justo, a obrigações... e, fundamentalmente, a uma noção semelhante à de mérito, status, condição, no sentido aristotélico de papel ocupado pela pessoa ou coisa no organismo social.

[...]

A equiparação entre ius (enquanto direito subjetivo) e dominium, ou a atribuição de caráter individualista e absoluto à propriedade romana, é fruto da construção da ciência jurídica moderna, que não guarda relação com o sentido originário da propriedade romana, tampouco com a leitura que dela faziam os juristas medievais.

[...]

Nesta mentalidade de plúrimas propriedades ou formas de apropriação dos bens, paradigmática é a figura do domínio útil, verdadeiro denominador comum da mentalidade proprietária de então. O adjetivo ‘útil’ indica a atribuição de um conteúdo ao conceito romano, conteúdo que se vincula à efetividade da utilização do bem. Atesta o reinado da efetividade e a impossibilidade de uma fórmula abstrata, de um vínculo puro de relações entre o homem e as coisas.[2] 

É o momento em que por toda parte insurge-se a ideia de função social, proclamando-a as Constituições. Como a Constituição de Weimar, cujo art. 153 dispôs: “A Constituição garante a propriedade. O seu conteúdo e os seus limites resultam de lei. (...) A propriedade obriga e o seu uso e exercício devem, ao mesmo tempo, representar uma função no interesse social”[3]. Ou a Lei Fundamental da República Federal Alemã de 1949 que, por sua vez, dispõe no seu art. 14, 2, que a “propriedade obriga. Seu uso deve estar a serviço do bem comum”.

Ou ainda o texto da Constituição da Itália: “Art. 42. – A propriedade é pública ou privada. Os bens econômicos pertencem ao Estado, ou a entidades ou a particulares. A propriedade privada é reconhecida e garantida pela lei, que determina as suas formas de aquisição, de posse e os limites, no intento de assegurar sua função social e de torná-la acessível a todos.”

Não obstante todas essas proclamações, divergem os doutrinadores em conceituar quais são os fundamentos que fariam com que este direito obrigasse, superando-se a noção de direito subjetivo, que, afinal, expressaria, mais do que o próprio direito em si, a liberdade do homem.

Há autores que, ainda no plano do subjetivismo, irão propor a transmutação moderna do conceito de direito subjetivo pelo de situação jurídica, como em Paul Roubier:

(...) Chegado a esse ponto de nossa exposição, nós começamos a tomar consciência, mais claramente do que não havíamos ainda visto até agora, do entrecruzamento de direitos e deveres que caracteriza a organização jurídica. É esse entrecruzamento que conduziu, nos autores contemporâneos, a tomar por base de suas construções a noção de situação jurídica mais do que aquela do direito subjetivo. A situação jurídica se apresenta a nós como constituindo um complexo de direitos e deveres; ora, esta é uma posição infinitamente mais freqüente que aquela de direitos existentes no estado de prerrogativas desimpedidas, ou de deveres aos quais não correspondam nenhuma vantagem (tradução livre)[4]

Também é o caso de Pietro Perlingieri:

no vigente ordenamento não existe um direito subjetivo - propriedade privada, crédito, usufruto - ilimitado, atribuído ao exclusivo interesse do sujeito, de modo tal que possa ser configurado como entidade pré-dada, isto é, preexistente ao ordenamento e que deva ser levada em consideração enquanto conceito, ou noção, transmitido de geração em geração. O que existe é um interesse juridicamente tutelado, uma situação jurídica que já em si mesma encerra limitações para o titular[5]

Esse último autor classifica mesmo a propriedade como uma situação subjetiva complexa centro de interesses que enfeixa poderes, deveres, ônus e obrigações, e cujo conteúdo depende de interesses extraproprietários, apurados no caso concreto:

Em substância, portanto, a propriedade não é tão somente um poder da vontade, um direito subjetivo que compete sem mais nada a um sujeito, mas é, ainda mais, uma situação jurídica subjetiva complexa (tradução livre)[6]

Não obstante, esta abordagem, ao não aprofundar os fundamentos teóricos do porquê a propriedade obriga, resvala em uma solidariedade definida abstratamente e funda-se, em derradeiro, na positividade constitucional:

Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e no pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2 Const.) o conteúdo da função social assume um papel do tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção ‘em ódio’ à propriedade privada, mas torna-se ‘a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito’, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular[7]. 

Uma coisa é o problema da conformação do estatuto proprietário, outra é aquela da expropriação. [...] Não é possível, portanto, chegar a propor um estatuto proprietário conformativo que seja substancialmente expropriativo (fala-se em conformação da propriedade privada quando os limites legais não tocam o conteúdo mínimo; de ‘expropriação’ no caso oposto). A conclusão pela qual é preciso falar em conteúdos mínimos da propriedade deve ser interpretada não em chave jusnaturalista, mas em relação à reserva de lei prevista na Constituição, a qual garante a propriedade, atribuindo à lei a tarefa de determinar os modos de aquisição, de gozo e os limites, com o objetivo de assegurar a função social e torná-la acessível a todos[8].

Deste modo, cabe enfrentar o problema da fundamentação teórica da função social da propriedade, tendo como elemento norteador a nos impulsionar o acórdão antes referido.

Neste, cabe ressaltar que existe um conflito sobre bens e sobre os títulos de atribuição quanto ao uso destes. Como definido em Tomás de Aquino[9], a propriedade é propriedade segundo o uso e não segundo a substância mesma dos bens. Uma propriedade é legítima se está em conformidade com os limites impostos pelo bem comum, pela destinação universal, sempre anterior a qualquer uso particular. Deste modo, a função social existe, primeiramente, nos bens objeto do direito de propriedade, para depois se ver destacada e atingida plenamente com o exercício do direito de propriedade sobre eles, conforme o estatuto proprietário reconheça ou não a função social deste direito:

A terra é, reconhecidamente, bem de produção; e o que a terra produz ou pode produzir está intimamente ligado à sobrevivência dos seres. A obrigação de fazê-lo e o modo de atingir este desiderato estão na base do campo de atuação do Direito Agrário e, conseqüentemente, no fenômeno agrário.

Começa-se com a denominada função social da terra, por alguns equivocadamente denominada função social da propriedade, em Direito Agrário, trocando o continente pelo conteúdo, pois a função social da terra é o gênero, do qual a função social da propriedade é espécie, como o são também a função social da posse, a função social dos contratos etc.[10]

Cada coisa que existe na natureza tem uma função natural. A solução jurídica de um caso concreto deve, normalmente, ser obtida através do recurso conjunto a estas duas fontes, que não são consideradas opostas, mas complementares: por um lado o estudo da natureza e, num segundo momento, a precisa determinação do legislador ou do juiz. A função de cada bem expressa a ordem das tendências ou inclinações naturais aos fins próprios do ser humano, aquela ordem que é própria do homem enquanto pessoa. A terra visa a garantir ao homem um espaço vital digno e suficiente para a vida pessoal e social. Também os bens supérfluos de uma pessoa são todos tidos em comum, no sentido em que o respectivo dono tem o dever de justiça de dispor deles para o benefício daqueles em necessidade, como os pobres[11].

A noção de função de um bem significa assim um poder, o poder de dar ao objeto da propriedade destino determinado, de vinculá-lo a certo objetivo. Como diz Teori Zavascki:

Por função social da propriedade há de se entender o princípio que diz respeito à utilização dos bens, e não à sua titularidade jurídica, a significar que sua força normativa ocorre independentemente da específica consideração de quem detenha o título jurídico de proprietário. Os bens, no seu sentido mais amplo, as propriedades, genericamente consideradas, é que estão submetidas a uma destinação social, e não o direito de propriedade em si mesmo. Bens, propriedades são fenômenos da realidade. Direito – e, portanto, direito da propriedade – é fenômeno do mundo dos pensamentos. Utilizar bens, ou não utilizá-los, dar-lhes ou não uma destinação que atenda aos interesses sociais, representa atuar no plano real, e não no campo puramente jurídico. A função social da propriedade (que seria melhor entendida no plural, ‘função social das propriedades’), realiza-se ou não, mediante atos concretos, de parte de quem efetivamente tem a disponibilidade física dos bens, ou seja, do possuidor, assim considerado no mais amplo sentido, seja ele titular do direito de propriedade ou não, seja ele detentor ou não de título jurídico a justificar sua posse[12].

O acórdão, pois, tratou o bem terra (lotes de terrenos) como ele efetivamente era, um bem destinado à moradia. Isso estava expresso na própria intencionalidade dos autores reivindicantes pois, originariamente, intentavam construir um loteamento - Loteamento Vila Andrade -  inscrito em 1955, com previsão de serviços de luz e água. Sendo o bem indissociável de sua finalidade, se a realidade urbanística que ele preconizava – o loteamento – volatilizou-se, tragada por uma favela consolidada, por força de uma certa erosão social, deixou o bem de existir como loteamento e também como lotes. Como o acórdão bem dispôs, a realidade concreta prepondera sobre a ‘pseudo realidade jurídico-cartorária’. Esta não pode subsistir, em razão da perda do objeto do direito de propriedade. Como pontua Judith Martins-Costa, a atribuição de função social aos bens enseja, em nossa mente centrada e concentrada na ideia de ‘direito subjetivo’, um verdadeiro giro epistemológico, para que passemos a considerar o tema a partir do bem, da res, e de suas efetivas utilidades[13].

A segunda questão importante colocada pelo acórdão é se existe um direito dos homens a apropriação em comum dos bens exteriores, sem especificação de direito de propriedade particular por parte de indivíduos ou grupos. Por certo que sim, como salientam Aristóteles e Tomás de Aquino. A instituição da propriedade privada é do domínio do ius gentium, faz parte do direito comum das comunidades humanas, e está regulada pela política da cidade que pressupõe a necessidade da instituição da propriedade privada para uma vida social justa. Alguma divisão da propriedade entre grupos e indivíduos – mas ainda não uma divisão específica e detalhada a qual releva o direito positivo – é um requisito moral prévio à decisão humana[14]. Darcy Bessone bem esclarece a função social das coisas e sua destinação comum, demonstrando que as coisas têm a função social vinculada a si mesmas e não às prerrogativas, porventura egoísticas, que alguns homens entendem destinarem-se somente a eles:

Seria fácil intuir-se, ainda que os historiadores do direito se omitissem a respeito, que, antes de qualquer formulação jurídica, já as coisas se submetiam ao poder do homem, como condição de fato, para o uso e gozo delas.

Convenha-se, contudo, em que, mesmo antes de qualquer experiência de direito, antes do Estado e do ordenamento jurídico, o homem já usava, gozava e dispunha materialmente das coisas.

Então, pode-se concluir que o poder de fato sobre as coisas preexistiu ao de direito.

Aconteceu, contudo, que os bens necessários ou úteis ao homem não se ofereceram, na natureza, em condições de uso e em quantidade bastante. A insuficiência engendraria lutas terríveis e destruidoras, se não se encontrassem formas de apropriação e uso, convenientemente disciplinadas. A escassez dos bens lhes conferiu sentido econômico e exigiu técnicas jurídicas que ordenassem e disciplinassem a posição do homem, em face da coisa, e as relações entre os homens, a respeito dela.

O poder de fato erigiu-se, assim, em poder de direito.

Surgiu, obviamente, o direito de propriedade como um produto cultural, uma criação da inteligência, considerada adequada à organização da vida em sociedade, isto é, da vida social. Seria contraditório que o direito subjetivo de propriedade fosse anterior ao direito objetivo, pois, na conhecida definição de Ihering, entende-se por direito subjetivo o interesse protegido pela lei, o que quer dizer que a sua caracterização requer, além do elemento material – o interesse, o elemento formal, que a lei, o direito objetivo, estabelece. Até porque Adolfo Merkl aponta, como condição prévia e necessária do direito subjetivo, a presença do direito objetivo, pois aquele é conteúdo deste.

Se o poder de fato sobre as coisas precedeu o direito objetivo, o direito de propriedade, como direito subjetivo, é conteúdo e fruto dele, como forma técnica de ordenamento da vida social.[15]

A terceira questão é aquela que indaga que, se os bens exteriores são destinados aos homens em comum, quais são os fundamentos pelos quais é lícito possuir as coisas como próprias? Na hipótese, por quais fundamentos poderiam os proprietários reivindicar os lotes não utilizados e, ao revés, qual a qüididade do direito dos posseiros aos mesmos bens.  Trata-se do confronto entre a propriedade sem função social com a posse com função social.

Via de regra, em nosso sistema jurídico, concebidos os julgamentos de maneira formal, o direito positivo sempre tratou como digno de proteção definitiva o direito de propriedade, conferindo à posse uma proteção meramente provisória, reconhecido aos possuidores tão-somente o direito ao recebimento das benfeitorias e acessões realizadas na coisa[16].

Para Tomás de Aquino os bens são originariamente destinados a todos em comum. Assim, concorrem a estes o proprietário reivindicante e os possuidores utilizadores. Sobre a propriedade é reconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens[17]. O homem realiza-se através da sua inteligência e da sua liberdade e, ao fazê-lo, assume como objeto e instrumento as coisas do mundo e delas se apropria. Neste seu agir, está o fundamento do direito à iniciativa e à propriedade individual. Mediante o seu trabalho, o homem empenha-se não só para proveito próprio, mas também para dos outros. O homem trabalha para acorrer às necessidades da sua família, da comunidade de que faz parte, e, em última instância, da humanidade inteira, além disso, colabora para o trabalho dos outros, numa cadeia de solidariedade que se alarga progressivamente. A posse dos meios de produção, tanto no campo industrial como agrícola, é justa e legítima, se serve para um trabalho útil; pelo contrário, torna-se ilegítima, quando não é valorizada ou serve para impedir o trabalho dos outros, para obter um ganho que não provém da expansão global do trabalho humano e da riqueza social, mas antes da sua repressão, da ilícita exploração, da especulação, e da ruptura da solidariedade no mundo do trabalho. Semelhante propriedade não tem qualquer justificação, e não pode receber tutela jurídica.

Portanto o direito de propriedade não é um absoluto formal, mas só se justifica se a ele é dado um uso social e na medida dessa justificação, mormente naquela classe de bens que não se destina primordialmente ao mercado, como é o caso da terra.

O cumprimento da função social da propriedade, deste modo, consubstancia um requisito preliminar, uma causa para o deferimento da tutela possessória; sem causa, inexiste garantia possessória constitucional à propriedade que descumpra sua função social:

A funcionalização da propriedade é introdução de um critério de valoração da própria titularidade, que passa a exigir atuações positivas de seu titular, a fim de adequar-se à tarefa que dele se espera na sociedade. (...) Pode-se dizer, com apoio na doutrina mais atenta, que a função social parece capaz de moldar o estatuto proprietário em sua essência, constituindo ‘il titolo giustificativo, la causa dell´attribuzione’ dos poderes do titular, ou seja ‘il fondamento dell´attribuzione, essendo divenuto determinare, per la considerazione legislativa, il collegamento della posizione del singolo con la sua appartenenza ad um organismo sociale[18].

O próprio Código Civil de 2002 estabelece que o proprietário não tem o direito de não usar o bem. Isso se infere do art. 1.276, § 2º, do Código Civil, que diz que o imóvel que o proprietário abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal, se se achar nas respectivas circunscrições. Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o proprietário de satisfazer os ônus fiscais.

Portanto, no acórdão em referência, os proprietários, em cadeia sucessória, deixaram de utilizar os terrenos por dezenas de anos a fio; o loteamento do terreno data de 1955; os terrenos foram adquiridos em 1978/1979. Sobre esses terrenos constituiu-se uma situação possessória; trata-se de favela consolidada, com ocupação iniciada há cerca de 20 anos. Está dotada, pelo poder público, de pelo menos três equipamentos urbanos: água, iluminação pública e luz domiciliar. Nela os possuidores têm sua moradia habitual, realizaram melhorias como algumas obras de alvenaria, os postes de iluminação, um pobre ateliê de costureira, etc., tudo a revelar uma vida urbana estável, no seu desconforto. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento só tem vida no papel.

Como preleciona Marcos Alcino de Azevedo Torres, o direito de propriedade é, em substância, a sua utilização, ou seja, a posse com o qual este é exercitado. O título gera o ius possidendi e não exercido, porque não foi transmitida a posse ou não havia posse para transmitir, ou tendo sido transmitida, não ocorreu a utilização da coisa pelo novo titular, sua posse será apenas civil, com base na espiritualização da posse que o direito civil admite. Enquanto permanecer a coisa sem utilização de terceiros, o título jurídico permitirá que o titular coloque em prática o direito à posse, transformando-o efetivamente em posse, possibilitando o cumprimento da função social da propriedade, antes descuidada. Essa posse artificial, meramente civil (normalmente posse do proprietário), em confronto com a posse real, efetiva (quando essa última for qualificada pela função social) deve ceder a esta[19].

O ganho de propriedade nunca deve ser permitido se suficiente para tornar-se um fim em si mesmo. Deve-se manter a finalidade da vida virtuosa sempre em vista e, deste modo, à propriedade que não exerce sua função em confronto com a posse com função social não se deve dar tutela jurídica.

Por último, resta responder, para a fundamentação teórica do acórdão, se assertivas acima expostas aplicam-se a toda sorte de bens ou somente àqueles que não fossem bem administrados ou supérfluos.

Para Tomás de Aquino, desenvolvendo o direito aristotélico, o conceito de direito é prioritariamente concebido como algo que pertence ao outro. Assim, existem preceitos de justiça, cada um impondo a mim e à minha comunidade um dever a todos sem discriminação[20]. Deste modo os direitos de propriedade privada são válidos porque necessários para a prosperidade e o desenvolvimento, mas são sujeitos a um dever de distribuir, direta ou indiretamente, os superflua – isto é, tudo além do que alguém necessita para manter a si próprio e sua família em um estado de vida apropriado para ele e sua vocação. Pois os recursos do mundo são, “por natureza”, comuns; isto é, os princípios da razão não identificam qualquer um como tendo uma prerrogativa anterior a eles, a não ser em razão de algum plano costumeiro ou outro socialmente positivado para a divisão e apropriação de tais recursos. E tais planos não poderiam ser autorizativos moralmente, a menos que reconhecessem algum dever de que se distribuíssem os superflua[21].

Ruy Azevedo Sodré, em sua tese de doutorado na Faculdade de Direito da USP, esclarece a distinção entre o suficiente e o superabundante dos bens apropriados:

Todo homem tem direito absoluto à quantidade de bens necessários ao preenchimento dos deveres inerentes à sua condição social. É o que se denomina de propriedade humana. O direito à vida por parte do pobre é superior ao direito de superabundância do rico. É a única exceção ao direito de propriedade: exceptio in rebus extremis.

Na propriedade do superabundante, distinguem-se os dois elementos: o social – usus – os bens exteriores devem ser detidos em proveito da comunidade, e o individual – procuratio et dispensatio – isto é, fazê-los produzir e distribuí-los proporcionalmente às necessidades de cada um. Esta gerência é remunerada. É a propriedade ativa[22].

Deste modo, os lotes de terreno eram disputados pelos proprietários e pelos possuidores. Esses nada tinham além dos bens de moradia (barracos) edificados sobre os terrenos (A favela já tem vida própria, está, repita-se dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas centenas, ou milhares, de pessoas. Só nos locais onde existiam os nove lotes reivindicados residem 30 famílias. Lá existe uma outra realidade urbana, com vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos, comprados, alugados). Para todos os efeitos de direito estão em situação de necessidade extrema. Para os proprietários, os bens, ao revés, são evidentemente superflua. Não diligenciaram estes em reavê-los por anos a fio; jamais exerceram a posse efetiva dos mesmos para qualquer finalidade útil. Têm deles apenas a posse artificial, meramente civil.

Assim, o direito à propriedade dos bens pressupõe algum uso válido para estes no decorrer do tempo e quando confrontada a propriedade sem função social de bens supérfluos com a posse com função social, a propriedade deve ceder à posse porque, como asseverava Tomás de Aquino, só será ato superrogatório pôr em comum, ativa ou passivamente, o supérfluo em relação àqueles que não estão em situação de necessidade extrema. Para todos os outros, em litígio, impõe-se o dever de justiça de distribuição dos bens[23].

A conclusão a ser extraída do presente trabalho é a de que, como apontou o acórdão do STJ concernente à prevalência da posse com função social sobre a propriedade sem função social na favela do Pullman em São Paulo, encontramo-nos em um momento importante para o direito no qual se procede à progressiva substanciação do conteúdo dos direitos.

Como demonstrado no texto, o direito de propriedade não pode mais ser concebido como um puro direito subjetivo, um poder do sujeito que expressa e realiza a sua liberdade. Não, pelo contrário, ele tem de ser estudado em sua complexidade, na sua interação com a totalidade dos membros da sociedade, proprietários e não-proprietários. A função social da propriedade só é corretamente compreendida quando se superam as insuficiências do conceito de direito subjetivo como um poder do sujeito e as aporias das categorizações abstracionistas, como a das situações jurídicas complexas, e se intenta uma reflexão teórico-filosófica que dê conta da complexidade do que significa a funcionalização de um direito, necessariamente a pressupor uma objetividade correlata com a teoria da justiça.

Com Tomás de Aquino vimos que tudo o que ultrapassa a necessidade do espaço vital e que não é bem administrado ou que, por qualquer razão, pela extensão ou pelo mau uso, prejudicar a outrem, deve ser submetido aos critérios da comunidade, isto é, do bem comum.

Fundado nesse referencial teórico é possível conceber, como foi explanado no acórdão, que no confronto entre a propriedade sem função social com a posse com função social, o direito de propriedade é, em substância, a sua utilização, ou seja, a posse com o qual este é exercitado. O título gera o ius possidendi e não exercido, porque não foi transmitida a posse ou não havia posse para transmitir, ou tendo sido transmitida, não ocorreu a utilização da coisa pelo novo titular, sua posse será apenas civil, com base na espiritualização da posse que o direito civil admite. Enquanto permanecer a coisa sem utilização de terceiros, o título jurídico permitirá que o titular coloque em prática o direito à posse, transformando-o efetivamente em posse, possibilitando o cumprimento da função social da propriedade, antes descuidada. Essa posse artificial, meramente civil, em confronto com a posse real, efetiva (quando essa última for qualificada pela função social) deve ceder a esta.

Deste modo, temos esboçado aqui um instrumental bastante útil para tentar definir os contornos do que seria a função social da propriedade e sua correta aplicação pelos Tribunais nos litígios reivindicatórios e possessórios.


Notas e Referências:

[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 75.659-SP. Civil e Processual. Ação Reivindicatória. Terrenos de Loteamento situados em área favelizada. Perecimento do direito de propriedade. Abandono. CC, arts. 524, 589, 77 e 78. Matéria de fato. Reexame. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. I. O direito de propriedade assegurado no art. 524 do Código Civil anterior não é absoluto, ocorrendo a sua perda em face do abandono de terrenos de loteamento que não chegou a ser concretamente implantado, e que foi paulatinamente favelizado ao longo do tempo, com a desfiguração das frações e arruamento originariamente previstos, consolidada, no local, uma nova realidade social e urbanística, consubstanciando a hipótese prevista nos arts. 589 c⁄c 77 e 78, da mesma lei substantiva. II. “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial” - Súmula n. 7-STJ. III. Recurso especial não conhecido. Recorrente: Aldo Bartholomeu e outros. Recorrido: Odair Pires de Paula e outros. Relator: Ministro Aldir Passarinho Júnior. Brasília, 21 de junho de 2005. Disponível em www.stj.gov.br. Acesso em 18.05.2017.

[2] VARELA, Laura Beck. Das propriedades à propriedade: construção de um direito. In: A reconstrução do Direito Privado. Org. Judith Martins-Costa. São Paulo: RT, 2002, p. 732-736.

[3] OPPENHEIMER, Heinrich. The Constitution of the Federal Republic of Germany. London: Stevens and Sons, Ltd., 1923, p. 213.

[4] “Arrivés à ce point de notre exposé, nous commençons a prendre conscience, plus nettement qu’on ne l’a encore fait jusqu’ici, de l’entrecroisement des droits et des devoirs, qui caractérise l’organisation juridique. C’est cet entrecroisement qui a abouti, chez les auteurs contemporains, à prendre pour base de leurs constructions la notion de la situation juridique plutôt que celle de droit subjectif. La situation juridique se présente à nous comme constituant un complexe de droits et de devoirs; or, c’est là une position infiniment plus fréquente que celle de droits existant à l’état de prérrogatives franches, ou de devoirs auxquels ne correspondrait aucun avantage”. ROUBIER, Paul. Droits subjectifs et situations juridiques. Paris: Dalloz, 1963, p. 52.

[5] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 121/122.

[6] “In sostanza, quindi, la proprietá non è piú soltanto un potere della volontà, un diritto soggettivo che spetta tout-court ad un soggeto, ma è ancor piú di una situazione giuridica soggetiva complessa”. PERLINGIERI, Pietro. Introduzione alla problematica della proprietà. Camerino: Jovene, 1971, p. 101.

[7] PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. op. cit., p. 226.

[8] Idem, p. 231.

[9] Para Tomás de Aquino a legitimidade da propriedade se funda a partir da distinção entre o “poder” (potestas) de gerir as coisas e delas dispor e o dever moral de utilizá-las (usus) em proveito de todos. Ao estabelecer que é permitido e mesmo necessário que o homem possua as próprias coisas, Tomás faz da propriedade um verdadeiro “poder”, um verdadeiro direito, de tal modo que o roubo será caracterizado como uma injustiça, pois atenta contra esse direito. O “uso” (usus) exprime a finalidade a perseguir e a maneira de realizar o exercício desse poder. É porque possui o verdadeiro poder e o verdadeiro direito de possuí-los que o homem deve utilizar os bens como “sendo comuns”, numa disposição virtuosa de “compartilhá-los com os necessitados”. “Poder” e “uso” formam uma espécie de dupla instância do mesmo direito-dever do qual o homem está investido, no plano ético e jurídico (AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. IIae. v. 6. São Paulo: Edições Loyola, 2005. p. 158, nota d).

[10] LIMA, Getúlio Targino. A posse agrária sobre bem imóvel, São Paulo: Saraiva, 1992, p.42.

[11] FINNIS, John. Aquinas: moral, political and legal theory. Oxford: Oxford Universitary Press, 1998, p. 191.

[12] ZAVASCKI, Teori Albino. A tutela da posse na Constituição e no projeto do novo Código Civil. In: A reconstrução do Direito Privado. Org. Judith Martins-Costa. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2002, p. 844.

[13] MARTINS-COSTA, Judith. Diretrizes teóricas do novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 148.

[14] FINNIS, John. Aquinas: moral, political and legal theory. Oxford: Oxford Universitary Press, 1998, p. 200.

[15] BESSONE, Darcy. Direitos Reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p.52-53.

[16] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.  Apelação Cível nº 1996.001.01195. 3ª Câmara Cível. Relator: Desembargador Antonio Eduardo F. Duarte. Julgamento em 14 de maio de 1996. Ação reivindicatória. Cumulação com perdas e danos. Prova do domínio. Posse injusta caracterizada. Retenção por benfeitoria. Inadmissibilidade. Ausência de cerceamento de defesa e de julgamento "ultra petita". Denunciação da lide ao alienante. Descabimento. Apelos improvidos. O registro imobiliário prova o domínio e, sendo o imóvel devidamente individuado, procede a reivindicatória contra o terceiro que injustamente o detém, visto que tal ação deve ser proposta em face de quem quer que se oponha em antagonismo com o direito de propriedade, porquanto, na disputa entre a posse e a propriedade, prevalece o direito de propriedade (Codigo Civil, artigo 524). Evidenciada a invasão e a clandestinidade, justa não pode ser a posse, o que não autoriza a alegação de ignorância de se estar praticando o ato, para pretender o reconhecimento do direito de retenção por benfeitorias, inclusive em tais hipóteses, tanto mais quando já integrantes do bem imóvel reivindicado, assim como impõe-se aos invasores a obrigação de indenizar as perdas e danos decorrentes e pleiteadas. Nessas circunstancias, afastado fica o julgamento "ultra petita", como também, porque desnecessária a prova pericial, inocorre a alegação de cerceamento de defesa, descabendo, ademais, a denunciação da lide ao alienante, uma vez que não se acha presente a hipótese do artigo 70, inciso I do CPC.

[17] A segunda atribuição que compete ao homem em relação aos bens é quanto ao uso. Aqui, Tomás de Aquino reduz significativamente o alcance do regime da propriedade privada: “sob esse aspecto, o homem não deve ter as coisas exteriores como próprias, mas como comuns, neste sentido que, de bom grado, cada um as partilhe com os necessitados” (AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. IIae. v. 6. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 158).

[18] TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Função social da propriedade e legalidade constitucional: anotações à decisão proferida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (AI 598.360.402 – São Luiz Gonzaga) Revista Direito, Estado e Sociedade. v. 09, n. 17, ago/dez de 2000, p. 48-49.

[19] TORRES, Marcos Alcino de Azevedo. A propriedade e a posse: um confronto em torno da função social. Rio de Janeiro : Lumen Juris, 2007, p. 373.

[20] As virtudes anexas da justiça mandam pagar o que se deve a determinadas pessoas para com as quais se está obrigado por alguma razão especial. Da mesma maneira a justiça propriamente dita faz pagar a todos em geral o que lhes é devido. Após os três preceitos pertencentes à religião pelos quais se paga o que se deve a Deus; e após o quarto, que pertence à piedade, e que se faz pagar o que se deve aos pais e que inclui todas as dívidas procedentes de alguma razão especial; era necessário dar seqüência aos preceitos relativos à justiça propriamente dita, que obriga a render indistintamente a todos os homens o que lhes é devido. AQUINO, TOMÁS DE. Suma Teológica. II. II. v. 6. op. cit. p. 710.

[21] FINNIS, John. Direito natural em Tomás de Aquino: sua reinserção no contexto do juspositivismo analítico. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 2007, p. 55.

[22] SODRÉ, Ruy Azevedo. Função social da propriedade privada. Tese de Doutorado em Filosofia do Direito. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo: Empresa gráfica da Revista dos Tribunais, s/d., p. 169.

[23] Para Tomás de Aquino, o sistema de propriedade privada de uso comum constitui a base da ordem política, como em Aristóteles. Nesse contexto, o princípio da propriedade privada enquanto princípio moral reclama a sua articulação com o dever dos membros da comunidade política concorrerem individualmente para o uso comum das coisas. Tomás de Aquino, ao tratar na questão 32 da Secunda secundae do dever de privação em benefício de outrem esclarece que: 1) é dever de justiça pôr os bens supérfluos em comum com aqueles que se encontrem em extrema necessidade; 2) é dever de justiça suportar que quaisquer bens próprios sejam usados por alguém em situação de extrema necessidade; 3) é apenas ato superrogatório pôr em comum, ativa ou passivamente, o supérfluo em relação àqueles que estão em situação de necessidade, embora não extrema (BRITO, Miguel Nogueira de. A justificação da propriedade privada numa democracia constitucional. Coimbra: Almedina, 2007, p. 173/177).

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