A filosofia a serviço da interpretação do direito – Por Cristiano Botelho Alves

22/04/2015

Discorrer sobre Filosofia do Direito requer uma apurada cautela, sabe-se que não existe (e talvez nunca existirá!) conceito uno e pétreo sobre tal assunto. O que se vê é um padrão de acordo com a cultura reinante. Sob esta ótica, a norma moral que reina em cada microcosmo da sociedade é a moral estabelecida, ou seja, a vontade da maioria; mais que isso, é o resultado do embate entre diversas ordens éticas de como deve ser o direito para aquela determinada cultura.

Da antiga civilização grega até os nossos dias, existiu uma infinidade de estudiosos e pesquisadores que se debruçaram sobre o tema e contribuíram cada um a seu modo e tempo com esta área que talvez seja a que mais contribui no exercício de interpretação do direito.

Segundo Del Vecchio:

A história da filosofia do direito, especificamente, nos mostra, antes de tudo, que em todo tempo se meditou sobre o problema do direito e da justiça, o qual em verdade, não foi artificiosamente inventado, mas corresponde a uma necessidade natural e constante do espírito humano[1].

No decurso do tempo permaneceu mesclada junto à religião, sendo gradualmente disseminada através de escritos sacros, sendo efetivamente capitaneada pelo aspecto dogmático, onde “neles domina o espírito dogmático; o direito é concebido como um comando da divindade, e como superior ao ser humano[2]”.  Na prática, o direito era visto como um desejo divino, e assim através da moral fomentou seus primeiros apontamentos positivos.

Essa aquiescência veio a transformar-se em lei (norma coercitiva), logo, diante de tal situação, pôde-se vislumbrar e confirmar o espírito moral que toda a letra de lei tem em sua essência, e como consequência definiu no mundo das experiências sociais o que deveria ou não ser aplicado.

"Sócrates que vivia em combates filosóficos homéricos com os Sofistas, sempre “disputava de maneira característica, devolvendo muitas perguntas e trazendo conclusões simples das respostas; afirmava nada saber, bem diversamente dos Sofistas, que presumiam saber tudo; golpeava-os com ironia e os confundia, interrogando-os (ironia/pergunta) sobre questões aparentemente simples, porém, no fundo, muito difíceis, e deste modo constrangendo-os indiretamente a dar-lhe razão[3]”.

"Platão, como pupilo de Sócrates, apresenta muito mais os discursos de seu antecessor com os Sofistas, demonstrando que sua base filosófica é alicerçada nas obras de seu mentor. Para ele, “a justiça é uma virtude por excelência[4]”.

Para Del Vecchio (2006, p. 21) “A justiça exige que cada um faça o que lhe cabe. Platão traça com cuidado o paralelo entre o Estado e o indivíduo, e o faz também nos particulares dando à sua concepção base psicológica”.

Independentemente das reflexões, é possível conceber que o fato jurídico é antecedido por uma batalha de conceitos éticos, onde apenas uma deles logrará êxito e contribuirá para formar aquilo que podemos atribuir como direito. Sem dúvida, formará parte do cenário de tantos outros conceitos existentes. Neste viés, surge um problema recorrente: A inquietante dúvida acerca do direito posto e sua letra fria na função de “classificar” o fato delituoso, sabendo que ele é único e não se repete, ainda que muitos casos possuam similaridades.

Por certo que antes de refletir sobre uma questão como essa, faz-se necessária a distinção entre texto normativo e norma. Ao refletir sobre as normas, inevitavelmente remetemo-nos ao conteúdo dos Códigos e Constituições, o que na verdade incorre-se em erro crasso, pois o que ali se encontra é somente uma peça escrita que serve de ferramenta ao intérprete para perscrutar-se e achar um “norte” para o caso concreto.

Este “norte” revelar-se-á como suporte deste texto normativo, acrescido da análise de todas as peculiaridades do caso, e, necessitará ainda utilizar-se de toda a bagagem cognitiva do intérprete para comprovar e justificar sua sentença.

Dentro deste retrospecto da Filosofia, sublinha-se que a distinção entre texto normativo e norma é quase imperceptível quando tratadas de forma genérica, mas se observadas profundamente, ter-se-á a noção exata a que cada qual representa para a aplicação do direito.

Não bastasse a função específica a que cada uma cumpre, tem-se o dever de entender um pouco mais sobre os efeitos que elas reverberam no mundo jurídico. Nesta linha de raciocínio que Coelho (professor Goethe Universitat), traz em seu artigo uma interessante definição:

Os dispositivos da Constituição, dos Códigos, das Leis – todos aqueles que desde sempre fomos ensinados a chamar de “normas jurídicas” – na verdade não são normas, mas apenas “textos normativos”. Textos normativos, quando interpretados, geram normas, mas, antes disso, são apenas limites de possibilidades para normas. Um texto normativo é uma peça escrita à qual se atribui autoridade de ser o limite textual da atribuição de sentido possível para o intérprete, mas que ainda não fixa um único sentido preciso com que se possa relacioná-lo a um ou mais casos concretos, de modo a gerar uma decisão. Um texto normativo é um “repositório de sentidos”, um ponto de partida que abre uma multiplicidade de interpretações possíveis, entre as quais o intérprete precisará selecionar, servindo-se de algum critério justificado. Esses múltiplos sentidos possíveis, abertos por um texto normativo, são “candidatos a normas”, mas “norma jurídica” será apenas aquele sentido que, tendo sido o escolhido justificadamente pelo intérprete entre os sentidos possíveis para o texto normativo, será utilizado para decidir o caso que se tenha em vista. Este sentido escolhido, sim, é preciso e obrigatório para o caso, e deve ser chamado de “norma jurídica”[5].

É nessas alocações mentais que se torna possível vislumbrar a enorme diferença entre texto normativo e norma propriamente dita, mais ainda, distinguem-se proposições aceitas e procedimentos orientados por tais proposições. Nada mais concreto do que atentar-se a detalhes tão sutis quanto os expostos pelo autor, o qual demonstrou, numa definição coerente e simples, algo como compilar um comando e analisar o alcance deste comando.

Assim, entende-se que não basta apenas “fundamentar para aplicar”, mas encontrar um modo de verificar os argumentos contrapostos daquilo que se encontra no limiar da letra da lei e a capacidade de alcance da aplicação sustentada pela moral. Ou seja, “a moral como fundamento da aplicação”!

Neste horizonte, encontra-se o alerta a todo o insatisfeito que a Filosofia do Direito não é e nem nunca será um apêndice da Justiça para o controle social, muito embora seja a coluna que sustenta a maioria das decisões do Judiciário de forma sutil tentando “descriptografar” o que os códigos e suas leis proferem.

Outra função (não menos importante) da Filosofia do Direito é a de ser o fiel da balança do Direito, visando sempre promover um equilíbrio entre a frieza dos códigos e o clamor social, entremeados ao pensamento do intérprete. É por isso que não raras vezes, vê-se em nosso cotidiano o que muitos chamam de “lacunas da lei”, ou seja, surge a sensação de ineficiência da jurisdição, quando na verdade o que falhou foi o senso crítico e analítico em favor do melhor direito a ser aplicado.

Na obra de Bittar e Almeida (2001, p.43) percebe-se este pensamento:

A Filosofia do Direito é um saber crítico a respeito das construções jurídicas erigidas pela Ciência do Direito e pela própria práxis do Direito. Mais que isso, é sua tarefa buscar os fundamentos do Direito, seja para cientificar-se de sua natureza, seja para criticar o assento sobre o qual se fundam as estruturas do raciocínio jurídico, provocando, por vezes, fissuras no edifício jurídico que por sobre as mesmas se ergue.

Em casos tais que se precipitam a carência filosófica e hermenêutica no Ordenamento Jurídico Brasileiro, principalmente quando surgem os casos de difícil solução (Hard Cases), que inevitavelmente dependem de apurada análise da realidade como um todo (visão holística) na busca da melhor solução.

É nesse ponto fulcral que Rosa[6] defende:

Embora tenha sido editada uma nova Constituição em 1988, há um inescondível déficit hermenêutico nos campos do Direito e Processo Penal no Brasil. A compreensão do Direito Penal e Processual válido de um realinhamento constitucional do sentido democrático, uma vez que tanto o Código Penal como o Código de Processo Penal são documentos editados, na Matriz, sob outra ordem constitucional e ideológica, bem assim porque houve significativa modificação do desenho político criminal contemporâneo. Ademais, a Constituição acolheu os Direitos Humanos em patamar capaz de dar eficácia imediata no campo de Controle Social. De sorte que há a necessidade de adequação da própria noção do papel e função do Direito e do Processo Penal diante da redemocratização do país. E, este trabalho ainda está sendo realizado, basicamente por força da (I) baixa constitucionalidade, entendida como a ausência de uma cultura democrática no Direito; (II) resistência ao modelo eminentemente acusatório preconizado pela Constituição da República de 1988, com a manutenção de uma mentalidade inquisitória; (III) herança equivocada de uma imaginária e nefasta “Teoria Geral do Processo”, quando, na verdade, os fundamentos do processo penal democrático assumem viés individual e não coletivo, a saber, não cabe “instrumentalidade processual penal”; (IV) difusão de um modelo coletivo de “Segurança Pública” que fomenta uma certa “Cultura do Medo”; (V) expansionismo do Direito Penal e recrudescimento dos meios de controle social; (VI) prevalência de teorias totalitárias, como Direito Penal do Inimigo, atreladas ao discurso da Lei e da Ordem.

O fato é que antes de investigar o pensamento reinante deste universo tão restrito, faz-se necessário saber que diante da repisada carência de um consenso acerca do que possa ser o direito, Rabenhorst (2000) define uma concepção simples e consistente, onde defende que a atividade filosófica (no caso do direito) é um exercício do pensamento enquanto questionamento.

A Filosofia do Direito que por si só não se vê como ciência propriamente dita desde seus primórdios, busca fundamentar-se no constante questionamento apresentando ideias e submetendo proposições ao crivo da boa análise. O que vem por consequência são bons ou inúteis argumentos.


Notas e Referências:

[1] DEL VECCHIO, Giorgio. 1878. História da Filosofia do Direito, tradução de João Baptista da Silva. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006. p. 11.

[2] DEL VECCHIO, Giorgio. 1878. História da Filosofia do Direito, tradução de João Baptista da Silva. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006. p.12.

[3] DEL VECCHIO, Giorgio. 1878. História da Filosofia do Direito, tradução de João Baptista da Silva. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006. p.16.

[4] DEL VECCHIO, Giorgio. 1878. História da Filosofia do Direito, tradução de João Baptista da Silva. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006. p.19.

[5] COELHO, André. Texto normativo e norma. <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/2009/04/texto-normativo-e-norma.html> acesso em: 13 ago.2014.

[6] ROSA, Alexandre Morais da. Por uma leitura garantista do sistema de controle social. Disponível em:<http://atualidadesdodireito.com.br/alexandredarosa/2012/08/09/por-uma-leitura-garantista-do-sistema-de-controle-social/ >. Acesso em: 24 fev. 2014

BITTAR, Eduardo C. B. e ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2011.

COELHO, André. Texto normativo e norma. Disponível em: <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com/ 2009/04/texto-normativo-e-norma.html> acesso em 05 nov. 2014.

DEL VECCHIO, Giorgio. 1878. História da Filosofia do Direito, tradução de João Baptista da Silva. Belo Horizonte: Ed. Líder, 2006.

RABENHORST, Eduardo Ramalho. Filosofia ou Teoria do Direito. Revista Problemata, nº 02, 2000, UFPB.

ROSA, Alexandre Morais da. Por uma leitura garantista do sistema de controle social. Disponível em:<http://atualidadesdodireito.com.br/alexandredarosa/2012/08/09/por-uma-leitura-garantista-do-sistema-de-controle-social/ >. Acesso em: 24 fev. 2014


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