A FIANÇA PRESTADA PELO TITULAR DA FIRMA INDIVIDUAL E PELO TITULAR DA EIRELI: CUIDADOS E ESPECIFICIDADES

11/10/2018

A fiança, ao lado do aval, é uma garantia fidejussória prestada por terceira pessoa em relação à obrigação principal.  A sua disciplina fundamental está consolidada no artigo 818 do Código Civil, mas existem situações peculiares pontuadas por legislação especial, como é o caso da fiança locatícia, prevista entre as garantias anotadas no rol do artigo 37 da Lei 8.245/1991, entre as quais: a caução, o seguro-fiança e a cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento.

Quanto às garantias fidejussórias, duas diferenças marcantes podem ser destacadas: a) o aval vincula-se a um título cambiário, enquanto que a fiança é prestada em contratos empresariais, locatícios e civis de forma geral; b) a invalidade da obrigação principal não invalida o aval, que é autônomo em relação ao título, ao contrário do que ocorre com a fiança, tida como uma obrigação acessória em relação à principal. Isto quer dizer que a invalidade da obrigação principal extingue a obrigação acessória, cabendo, inclusive, as exceções pessoais contidas no artigo 837 do Código Civil.

Estabelecidas as premissas preliminares, cabe indagar: o titular (pessoa física) da firma individual responde pela obrigação principal e pela acessória (fiança)? E, no caso da empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), qual é o cenário?

A resposta a estes questionamentos decorre da compreensão sobre a existência de personalidade jurídica própria, distinta daquela da pessoa natural.

A firma individual, assim chamada e conhecida, apesar das ressalvas quanto à expressão, não faz parte do rol do artigo 44 do Código Civil, ou seja, o empresário individual é pessoa natural (e não jurídica), que desenvolve atividades de empresa (CC, art. 966). O Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas — CNPJ, por si só, não atrai, para a espécie, a condição de pessoa jurídica.

A jurisprudência assentou o entendimento de que a cláusula de fiança compromissada pelo titular da firma individual, em operações cuja obrigação principal a ela reverte, é ineficaz. O fundamento de ineficácia decorre do argumento de que, no caso do exemplo, a fiança não teria sido prestada por “terceira pessoa” estranha à obrigação principal, nos termos do conceito fechado previsto no artigo 818 do CC, mas pela mesma pessoa natural que apenas exerce atividade empresária, pois, na hipótese, a personalidade jurídica é detida pela pessoa natural, não havendo, inclusive, separação patrimonial.

Ocorre que, na prática, é muito comum, principalmente em locações comerciais, o uso da firma individual na figura de locatária, como se pessoa jurídica fosse e, da pessoa física do titular, na condição de fiador, repercutindo em situação de ineficácia, pois, para efeitos práticos, locatária e fiador estão representados pela mesma pessoa natural, apesar de o empresário individual exercer atividade de empresa. Tal conclusão tem importante repercussão, pois, neste caso, cabível será a arguição da exceção do bem de família pelo fiador/empresário individual, como forma de proteção de um único bem, diante da ineficácia da cláusula ou do contrato de fiança.

Neste sentido caminha a jurisprudência, como se observa da seguinte ementa:

Apelação. Despejo por falta de pagamento cumulada com cobrança de aluguéis. Fiança prestada pela pessoa física que é titular da firma individual locatária. Ineficácia da garantia e ilegitimidade de parte reconhecida (...)”.[i] 

É certo que o contrato de locação comercial se caracteriza como um contrato interempresarial, onde, em ambos os lados, invariavelmente, situam-se empresários. A escolha da pessoa do fiador recai, salvo raras exceções, em uma terceira pessoa com interesse no sucesso do negócio do locatário ou com alguma relação com o segmento, sendo frequente, inclusive, que a fiança seja prestada por um ou mais sócios da sociedade empresária, todavia, tal garantia não deve ser prestada pelo titular da firma individual nos assuntos em que responda pela obrigação principal.[ii]

Por outro lado, a EIRELI, prevista no inciso IV do artigo 44 do CC, atrai para si a condição de pessoa jurídica de direito privado, com personalidade jurídica por destinação legal, distinta da pessoa natural, nos termos do que dispõe o artigo 980-A do CC, ampliando-se a visão sobre uma ficção jurídica um pouco mais sofisticada.

Segundo Assis, “pode-se conceituar a empresa individual de responsabilidade limitada brasileira como o agente econômico personificado, constituído por ato unilateral de uma pessoa natural, mediante aporte de patrimônio mínimo, ou mediante a conversão de uma sociedade unipessoal com patrimônio líquido mínimo para o fim de exercer atividade própria de empresário”[iii].

Convém indagar: o raciocínio para a EIRELI é o mesmo utilizado para a firma individual? Ou é possível seguir a esteira das aplicações e implicações cabíveis à sociedade limitada, viabilizando-se, portanto, ao titular da EIRELI figurar também como fiador nas obrigações de que ela (EIRELI) seja partícipe da obrigação principal?

Esta situação é relativamente nova e certamente merece muita reflexão. Neste contexto, cabe opinar pela validade da cláusula de fiança nestas hipóteses, considerando-se o conteúdo definidor da personalidade jurídica, que, neste caso, decorre de atribuição legal. Assim, na EIRELI, para efeitos práticos e formais, há distinção entre a personalidade jurídica da empresa e a da pessoa natural que a titulariza, bem assim em relação ao patrimônio, distinto na relação entre uma e outra, portanto, válida será a cláusula ou o contrato de fiança.

 

 

Notas e Referências

[i] TJSP — Apelação 1009983-93.2016.8.26.0309; Relator (a): Soares Levada; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Foro de Jundiaí - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 02/04/2018; Data de Registro: 02/04/2018.

[ii] ZOLANDECK, João Carlos Adalberto. A insegurança jurídica imposta ao mercado imobiliário — 1ª. Turma do STF: uma decisão a mais, desagregadora do equilíbrio da ordem econômica. <http://emporiododireito.com.br/leitura/a-inseguranca-juridica-imposta-ao-mercado-imobiliario-1-turma-do-stf-uma-decisao-a-mais-desagregadora-do-equilibrio-da-ordem-economica>. Disponível em: 10 de outubro de 2018.

[iii] GOLÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Direito de empresa. 7 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 129.

 

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