A democracia constitucional entre militantes contra a democracia e a democracia militante

07/12/2022

Não é novidade para ninguém que o Brasil vivencia um clima de tensão entre os poderes da República. Estimulado por constantes ataques do ainda Presidente da República ao Supremo Tribunal Federal (STF) e a seus integrantes, esse é um tema que tem dominado o noticiário político nacional. O conflito tomou tamanha proporção que não se restringe mais à Praça dos Três Poderes, em Brasília, ou aos gabinetes, às salas de reuniões e aos corredores dos prédios oficiais.Tampouco envolve apenas agentes políticos, como, de um lado, o próprio Presidente da República, seus Ministros auxiliares e parlamentares aliados e, de outro, os Ministros do STF.

Milhares de pessoas ainda ocupam as ruas do país pedindo a cassação dos Ministros do STF e o seu linchamento público, bem como o fechamento do Tribunal e de outras instituições democráticas através de uma intervenção militar. Passada a eleição presidencial do último mês de outubro, foi acrescido à lista de reivindicações, todavia, sem qualquer embasamento legal, constitucional e fático-probatório, o cancelamento do pleito, motivado única e exclusivamente pela derrota de Jair Bolsonaro para Luiz Inácio Lula da Silva nas urnas.

Para demonstrar por quanto tempo o referido conflito se arrasta, ainda em 2019, o STF, por decisão do seu Presidente à época dos fatos, o Ministro Dias Toffoli, determinou, com fundamento no Regimento Interno do próprio Tribunal, a instauração de um inquérito para apuração de fatos e infrações correspondentes à divulgação de fake news, denunciações caluniosas e ameaças que atingem a honorabilidade e a segurança do STF, de seus membros e familiares. Para conduzir o feito, foi designado o Ministro Alexandre de Moraes que, desde então, passou a ser um dos alvos preferidos dos ataques do ainda Presidente da República e de seus apoiadores.

O inquérito popularmente conhecido como “inquérito das fake news” foi instituído por uma Portaria do STF, a qual teve a sua constitucionalidade questionada pelo Partido Rede Sustentabilidade na ADPF 572. Por dez votos a um, vencido apenas o Ministro Marco Aurélio, o STF julgou totalmente improcedentes os pedidos formulados, reconhecendo, portanto, a constitucionalidade da Portaria que instituiu o “inquérito das fake news”.[1]

Dentre os argumentos utilizados para fundamentar a decisão, pelo menos um tem ganhado destaque no debate jurídico-político nacional recente. Trata-se do socorro ao conceito de democracia militante, presente tanto no voto do Ministro Edson Fachin,[2] relator da ADPF 572, quanto do Ministro Gilmar Mendes.[3]

Mencionado no acórdão como um instrumento capaz de proteger o Estado Democrático de Direito e os poderes constituídos de ameaças autoritárias, o conceito de democracia militante é uma construção de autoria do constitucionalista alemão Karl Loewenstein que, de ascendência judaica e com nítida inclinação democrático-liberal, teve de refugiar-se nos Estados Unidos em 1933 com a ascensão do regime nazista. O conceito de democracia militante foi apresentado pelo autor em um artigo dividido em duas partes, publicado pela Revista da Associação Estadunidense de Ciência Política, no ano de 1937.[4][5] Por meio dele, Loewenstein pretendia oferecer uma proposta de defesa dos regimes democráticos contra a ascensão de movimentos fascistas.

Na primeira parte do artigo, Loewenstein inicia sua argumentação constatando que o fascismo, àquele tempo, não seria mais um incidente isolado na história de alguns países. Pelo contrário, havia se espalhado mundo afora submetendo mais pessoas e territórios do que governos democráticos. Classificando-o como a mais efetiva técnica de governo da história moderna é que, para Loewenstein, a democracia deveria se tornar militante a fim de conter o avanço de movimentos fascistas pelo mundo.

Considerando o fascismo não como mera ideologia, mas especialmente como uma técnica de governo que se vale não apenas do apelo aos sentimentos e às emoções das massas para destruir democracias, mas também de instrumentos legais disponíveis nas próprias democracias, em um processo descrito como uma substituição de um governo constitucional por um governo emocional preocupado única e exclusivamente com a sua manutenção no poder,[6] Loewenstein, primeiro, define como a reação democrática à insurgência fascista não deveria acontecer. Da sua perspectiva, o contra-ataque democrático a insurreições fascistas não poderia se dar em bases meramente emocionais. Um governo constitucional, pela sua própria natureza, poderia apenas utilizar da razão. Jamais poderia mobilizar, com sucesso, as emoções. Como um sistema racional, a democracia poderia provar a sua superioridade apenas através das suas conquistas, mesmo que ofuscadas pelo sofrimento econômico e desacreditadas pelas deficiências sociais. Em suma, para Loewenstein, o romantismo democrático seria uma contradição em termos.[7]

Em seguida, Loewenstein destaca: realisticamente, a defesa da democracia somente poderia ser projetada em linhas políticas e legislativas. Os dois métodos, o político e o legislativo, segundo o autor, seriam claramente distintos. Espiritualmente, os dois adviriam da mesma vontade de autoproteção e de autopreservação. Contudo, enquanto a atitude política almejaria uma atuação conjunta e uniforme de todos os setores democráticos contra um inimigo comum, a legislação antifascista em Estados democráticos estaria diretamente apontada para a técnica fascista de governo. Essa legislação poderia ser aprovada, mesmo sem qualquer consenso formal entre os partidos antifascistas. Por outro lado, a união política sozinha, sem qualquer técnica legislativa, não conseguiria alcançar seus objetivos. A situação seria agravada pelo fato de que, àquele tempo, o comunismo se encontrava sob severas restrições em muitos países. A ausência do elemento perturbador do comunismo facilitou, de acordo com Loewenstein, a aproximação entre os partidos burgueses liberais e sociais-democratas moderados. Como resultado, fez com que em muitos países, à exceção da França, os esforços desses partidos fossem igualmente direcionados ao combate ao fascismo e ao comunismo. Consequentemente, a legislação anti-extremista elaborada falhava por não estar direcionada diretamente à proteção contra flagrantes violações aos princípios democráticos. Desse modo, os partidos católicos se detiveram no combate à propaganda antirreligiosa do comunismo e os partidos liberais de centro, os primeiros a serem derrotados pelo fascismo, concentraram também seus esforços contra o comunismo.[8]

Além disso, enquanto a Internacional Fascista operaria estrategicamente em linhas transnacionais, muito pouco havia sido feito para, internacionalmente, estabelecer uma cooperação entre democracias. As democracias ainda aderiam à crença de que uma guerra de doutrinas deveria ser evitada a qualquer custo. A existência de um inimigo comum ainda não seria totalmente reconhecida. Nisso, o fascismo internacional se beneficiaria novamente. Segundo Loewenstein, nos países nos quais o fascismo chegou ao poder, este foi beneficiado pela desunião dos seus oponentes.[9]

Por essas razões, de acordo com Loewenstein, o mais importante passo para proteger governos constitucionais de movimentos fascistas autoritários deveria ser dado em outra direção. Como o fascismo é uma técnica de governo, ele somente poderia ser derrotado neste plano, isto é, por outra técnica de governo. O autor destaca que levou anos para ser rompido o equívoco democrático de que o principal obstáculo à defesa contra o fascismo é o próprio fundamentalismo democrático. A democracia roga por direitos fundamentais, por paridade de armas para todas as correntes ideológicas, por liberdade de expressão, de reunião e de imprensa. Nesse instante, Loewenstein questiona: como seria possível restringir esses fundamentos próprios a qualquer regime democrático sem, no entanto, destruir as bases de existência e justificação da democracia?[10]

O autor pondera que, pelo menos, a autocomplacência legalista e a letargia suicida abriram caminho para uma melhor compreensão da realidade. Segundo Loewenstein, um estudo detido da técnica de governo fascista permitiria descobrir as vulnerabilidades do sistema democrático, bem como as formas de protegê-lo. Um corpo elaborado de legislação antifascista teria sido aprovado em todos os países democráticos. Seu principal foco foi conter particularmente as táticas emocionais do fascismo. Passo a passo, cada ponto no qual o fascismo está fundamentado foi combatido por alguma disposição legal que o deformou. Ademais, o fascismo, como uma técnica de governo, seguiu o caminho de todos os artifícios puramente técnicos. Ele se tornou esteriotipado. Dessa maneira, esforços deveriam ser tomados para evitar a repetição de fórmulas e padrões de ação que foram utilizados com sucesso em outros países.[11]

Assim, o contra-ataque legislativo pode atingir definitivamente a técnica emocional do fascismo. As medidas profiláticas adotadas em cada país seriam surpreendentemente similares. Depois de muito hesitar e de uma espécie de inibição legalista, medidas eficientes contra o fascismo poderiam ser encontradas na legislação de diversos países. Apesar do sucesso eleitoral de movimentos fascistas em muitos países, como Tchecoslováquia, Bélgica e Holanda, os movimentos foram mantidos pela legislação dentro dos limites dos partidos políticos normais; e se o fascismo até então não teria saído do controle em nenhum país democrático que adotou a legislação antifascista, para Loewenstein, isso quer dizer que a democracia finalmente se tornou militante.[12]

Na sequência, Loewenstein pondera que nenhum movimento espiritual pode ser suprimido a longo prazo meramente através de medidas legislativas e administrativas. No máximo, pode ser apenas freado. Sempre no curso da história o espírito rompeu as correntes que o prendia. Como o fascismo seria uma técnica de governo, não haveria evidências históricas de que uma técnica de governo entendida enquanto tal e enfrentada enquanto tal seria irresistível.[13]

Loewenstein afirma que as democracias resistiram melhor à provação da Primeira Guerra Mundial do que Estados autoritários, justamente porque adotaram métodos autoritários. Poucos teriam objetado seriamente a suspensão temporária de princípios constitucionais pelo bem da autodefesa nacional. Durante a Guerra, como pontuou Léon Blum, a legalidade tirou férias. Novamente, segundo Loewenstein, a democracia estaria em uma guerra, embora uma guerra interna. Por essa razão, para o autor, escrúpulos constitucionais não poderiam mais restringir, com base em fundamentos democráticos, iniciativas que almejam proteger esses próprios fundamentos da destruição.[14]

Como a ordem democrático-liberal pressuporia tempos normais, segundo Loewenstein, constituições deveriam ser endurecidas quando confrontadas com movimentos que almejam a sua destruição. Onde os direitos fundamentais estão institucionalizados, sustenta o autor, sua suspensão temporária estaria justificada. Quando os canais ordinários de legislação estão bloqueados pela destruição e pela sabotagem fascista, o Estado democrático poderia usar poderes de emergência que, se não explicitamente, implicitamente estariam relacionados à própria noção de governo.[15]

O fascismo, afirma Loewenstein, declarou guerra à democracia. Àquele momento da década de 1930, as democracias europeias estavam, segundo o autor, sitiadas internamente. Estado de sítio significava, para Loewenstein, mesmo em constituições democráticas, concentração de poderes nas mãos do governo e suspensão de direitos fundamentais. Se a democracia acredita na superioridade de seus valores sobre as platitudes oportunistas do fascismo, ela deveria, segundo Loewenstein, viver de acordo com as demandas do momento e todo esforço possível deveria ser feito para salvá-la, até mesmo sob o risco e o custo da violação de princípios fundamentais.[16] Nas palavras do próprio autor: 

O governo é feito para governar. O fascismo declarou guerra à democracia. Um estado de sítio virtual confronta as democracias europeias. Estado de sítio significa, mesmo sob constituições democráticas, concentração de poderes nas mãos do governo e suspensão de direitos fundamentais. Se a democracia acredita na superioridade de seus valores absolutos sobre os chavões oportunistas do fascismo, ela deve estar à altura das exigências do momento, e todos os esforços devem ser feitos para resgatá-la, mesmo com o risco e o custo de violação de princípios fundamentais.[17] 

Na segunda parte do mesmo artigo, publicado na Revista da Associação Estadunidense de Ciência Política, no mesmo ano de 1937, Loewenstein apresenta alguns exemplos de democracia militante pela Europa e de legislações antifascistas adotadas em muitos países para conter o extremismo subversivo do fascismo.[18]Após analisar toda essa legislação, Loewenstein conclui que a democracia europeia teria ultrapassado o fundamentalismo democrático e ascendido à militância. A técnica fascista teria sido discernida e estaria sendo enfrentada por uma ação efetiva. Nas suas próprias palavras: o fogo se combate com o fogo.[19]

De todo modo, o autor pondera que superestimar a capacidade de textos legais conterem os efeitos da técnica emocional fascista pode ser um erro. Da sua perspectiva, mesmo as leis mais bem elaboradas em defesa do regime democrático podem não valer o papel em que estão escritas se não estiverem acompanhadas de uma indomável vontade de sobrevivência. Loewenstein afirma que, para superar definitivamente o perigo de a Europa se tornar totalmente fascista, seria necessário remover as causas, isto é, mudar a estrutura mental da era das massas e da emoção racionalizada. Sua proposta é deixar o governo emocional seguir seu caminho até ser dominado por novos métodos psicotécnicos que regularizem as flutuações entre o racionalismo e o misticismo.[20]

Não se deveria esperar a salvação dos valores absolutos da democracia a partir da abdicação em favor do emocionalismo, mas, sim, pela transformação deliberada de formas obsoletas e conceitos rígidos em novas instrumentalidades, as quais Loewenstein sugere que não fujamos da palavra “autoritária” para qualificar a democracia. Embora essa democracia autoritária possa transubstancializar técnicas parlamentares tradicionais, para o autor, isso teria uma importância secundária quando comparado com o seu fim imediato.[21]

Loewenstein propõe, então, que a democracia precisaria ser redefinida, pelo menos até que um melhor ajuste social seja alcançado para garantir a autoridade disciplinada por homens de mente liberal orientada para os fins últimos do governo liberal: dignidade humana e liberdade. Enquanto isso, o autor sugere que, como a maioria do povo em todas as democracias observadas ainda seria avessa à mentalidade fascista, o mínimo que se deveria esperar é que os governos encarregados dos processos constitucionais estivessem dispostos a enfrentar e derrotar a técnica fascista em seu próprio campo de batalha.[22]

Loewenstein encerra a segunda parte do artigo afirmando que nenhum país está imune ao fascismo como movimento mundial. Após reconhecer esse fato, o autor faz conjecturas sobre a necessidade de serem adotadas medidas legislativas contra o fascismo incipiente nos Estados Unidos.[23] Contudo, uma investigação nesse sentido estaria além dos limites do seu estudo. Seja como for, o autor encerra dizendo que se a resposta for afirmativa, um segundo problema surgiria, qual seja, o de saber como seria possível conceber a legislação anti-extremista federal ou estadual em conformidade com o elaborado fundamentalismo dos direitos constitucionais consagrados na Constituição estadunidense.[24]

Apesar de mencionado no acórdão da ADPF 572, o conceito de democracia militante não foi desenvolvido nos votos proferidos pelos Ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes. De qualquer forma, a recuperação da obra de Karl Loewenstein permite-nos formular observações críticas quanto ao seu uso pelo STF sob a vigência da Constituição de 1988.

Em primeiro lugar, ficou claro que, com o conceito de democracia militante, Loewenstein não pretendeu fornecer uma técnica argumentativa para que os tribunais apreciassem a constitucionalidade de atos normativos autoritários. O autor é bem claro em seu texto quando afirma que a democracia militante se trata de uma técnica de governo a ser desenvolvida nas vias legislativas e políticas. Em nenhum momento Loewenstein conferiu qualquer papel aos tribunais enquanto líderes de uma cruzada da democracia militante contra o fascismo. Tanto é assim que o autor atribui à democracia militante status semelhante ao estado de sítio, porém, contra inimigos internos. Isso já é o bastante para demonstrar que a democracia militante, conforme Loewenstein, não estaria à disposição dos tribunais, mas de um governo democraticamente estabelecido para defender a si próprio perante o fascismo. 

Nesse sentido, para além disso, o socorro dos Ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes à tese da democracia militante na ADPF 572 cria uma situação um tanto curiosa. Viu-se que, para Loewenstein, a democracia militante implica atuar no mesmo campo do fascismo. Isso não parece assustar o autor que, inclusive, recomenda que não se tenha receio de qualificar uma técnica de governo praticada nesses termos como uma democracia autoritária e se sente confortável em dizer que princípios constitucionais e direitos fundamentais sejam suspensos, mesmo sem previsão constitucional, pois, na sua leitura, os fins da democracia militante justificariam seus próprios meios autoritários e excepcionais. Aderindo, assim, a essa ideia sem qualquer ressalva, mesmo tendo votado pelo não provimento dos pedidos formulados pelo Partido Rede Sustentabilidade na ADPF 572, os Ministros Edson Fachin e Gilmar Mendes implicitamente estariam reconhecendo que o inquérito, tal como instaurado pelo STF, seria, de fato, incompatível com a Constituição, mas mesmo assim justificável porque em favor da democracia? Isso seria uma contradição em seus próprios termos.

Em segundo lugar, do ponto de vista da crítica interna ao próprio argumento de Karl Loewenstein, poder-se-ia dizer que a sua preocupação inicial em distinguir governos constitucionais democráticos de ditaduras se esvai na medida em que o conceito de democracia militante vai sendo construído pelo próprio autor. No início do artigo, Loewenstein enfatiza que a principal diferença entre um governo constitucional e uma ditadura seria que a primeira funcionaria com base na racionalidade implicando Estado de Direito e preservação de direitos fundamentais, enquanto a segunda substituiria o Estado de Direito por um oportunismo legalizado, uma espécie de raison d’état disfarçada.

Acontece que, como visto, é o próprio autor quem equipara garantias constitucionais a meros escrúpulos que deveriam ceder frente aos métodos da democracia militante. Ao reconhecer que apenas leis bem elaboradas não seriam suficientemente capazes de defender um regime democrático e propor que a salvação da democracia dependeria da indomável vontade de sobrevivência da própria sociedade, o autor afirma expressamente que nesse processo o melhor seria deixar o governo emocional seguir seu caminho até ser dominado por novos métodos psicotécnicos que regularizem as flutuações entre o racionalismo e o misticismo. Ou seja, reconhecida está a ausência de qualquer vestígio da distinção inicialmente construída pelo próprio autor entre governos constitucionais e ditaduras. Perde-se de vista a dita racionalidade que distinguiria democracias de ditaduras ou, ao menos, uma racionalidade normativa cederia o lugar para uma racionalidade meramente instrumental. Assim, a intenção do autor de combater o fogo com o fogo não seria capaz de acabar com o incêndio. Antes disso, aumenta-o. Isso, a sucessão dos fatos após 1937 foi implacável em demonstrar, inclusive, nos países citados pelo próprio autor como referências para a elaboração de legislação antifascista. Afinal, o mais irônico, nenhuma dessas medidas antifascistas foi capaz de deter o fascismo.

Em terceiro lugar, a construção teórica de Loewenstein parte do pressuposto equivocado de que haveria um conflito entre práticas autoritárias no interior de regimes democráticos e democracia. Esse conflito, na verdade, não existe, porque é preciso diferenciar práticas lícitas de práticas ilícitas. Nesse sentido, o pressuposto de que para a defesa da democracia um governo precisaria sacrificar direitos, correndo o risco de suspender princípios constitucionais em uma democracia constitucional, é errado. Errado porque: a) não há poderes implícitos que permitam suspender temporariamente direitos em uma democracia constitucional, já que a própria constituição explicita as hipóteses e procedimentos em que direitos podem ser suspensos e quais são esses direitos; e b), o mais importante, cabe considerar que ataques antidemocráticos, mesmo que em nome de uma suposta liberdade de expressão, não configuram, em hipótese alguma, exercício regular de direito, mas abuso de direito, condutas ilícitas, portanto. Não estamos mais, importante que se diga, em 1937. Para enfrentar esses ataques, basta aplicar os mecanismos coercitivos que o Estado Democrático de Direito já dispõe, sem apelar a nenhuma excepcionalidade ou mesmo a falsos poderes implícitos.

Com isso, queremos reafirmar a posição segundo a qual o chamado inquérito das fake news no STF e as decisões tomadas pelo TSE e por seu presidente, o Min. Alexandre de Moraes, durante e após o processo eleitoral, não configuram nem o exercício de poderes excepcionais, justificáveis ainda que em favor da democracia, já que se constituem na defesa perante o contempt of court e na garantia do devido processo eleitoral, nem como violação de direitos, já que estamos diante de condutas ilícitas.[25]

Em quarto lugar, o argumento de que seria válido combater o fascismo como inimigo interno por instrumentos semelhantes ao do fascismo chama a atenção. Esse argumento, contudo, não é novo em nossa história constitucional. Ele foi utilizado pelo preâmbulo do Ato Institucional nº 5, o mais repressivo de nossa história republicana, quando o Governo do General Costa e Silva afirmou que o recrudescimento do regime se justificaria ao argumento de que setores da sociedade brasileira estariam subvertendo os próprios instrumentos legais da “revolução de 1964” para destruí-la. Assim, o regime autoritário dizia ser imperioso adotar medidas que impedissem a frustração dos seus próprios ideais. Isto é, razões análogas que motivaram Loewenstein a justificar a adoção de medidas legislativas de promoção da democracia militante autorizariam o governo militar da ditadura brasileira a editar o Ato Institucional nº 5. Uma proposta teórica que serviria a ambos os fins, contudo, não é compatível com uma democracia constitucional.

A democracia constitucional garante o respeito aos direitos políticos da minoria como parte integrante da vida democrática. Além disso, pressupõe formas de representação e participação dos mais diversos pontos de vista existentes na sociedade nos processos de formação da vontade estatal, seja no Legislativo, na Administração Pública ou no Poder Judiciário, bem como o respeito ao devido processo legal, através do controle de constitucionalidade e de legalidade das decisões jurídico-políticas.[26]

A responsabilização, inclusive penal, de todas as formas de violência, intolerância, preconceito e discriminação é parte constitutiva da própria democracia constitucional, o que significa afirmar que manifestações violentas, intolerantes, fundamentalistas e subversivas, sejam armadas ou não,[27] que atentem contra o regime constitucional-democrático não devem ser confundidas ou tratadas como liberdade de expressão e de manifestação. Por outro lado, a bem da democracia constitucional, a devida distinção entre opositores e adversários políticos, por um lado, e inimigos da constituição, por outro, não pode ser naturalizada. Mesmo os acusados como inimigos da constituição, aqueles acusados de práticas atentatórias ao regime democrático, devem passar pelo crivo do devido processo legal, com todas as garantias constitucionais que lhe são inerentes.[28]

Caso contrário, o risco sempre presente é o de desrespeito à democracia como suposta defesa da democracia. Repaginar velhas doutrinas da segurança nacional ou um direito penal do inimigo constitui, sempre, violação ao constitucionalismo democrático.[29] A democracia jamais pode ser autoritária ou utilizar os mesmos métodos de ditaduras, mesmo que temporariamente, independentemente dos motivos invocados como justificativa. Tampouco a democracia precisa ser militante nos termos propostos por Loewenstein.

Assim, como bem disse Lenio Streck: “Numa palavra final: entre a democracia militante e a militância contra a democracia, não prefiro nenhuma. Trata-se de um falso dilema.Entre essas alternativas temos de ser a favor é da democracia constitucional. Porque as constituições não são pactos suicidas.”[30]

 

Notas e referências

[1] STRECK, Lenio Luiz. O STF sendo atacado e o MP fica arrumando o Van Gogh na parede.Conjur, 2019. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2019-abr-25/senso-incomum-stf-sendo-atacado-mp-fica-arrumando-van-gogh-parede.  Acesso em: 03 dez. 2022. STRECK, Lenio Luiz, CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade, BACHA E SILVA, Diogo. Inquérito judicial do STF: o MP como parte ou "juiz das garantias"? Conjur, 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-mai-28/opiniao-inquerito-stf-mp-parte-ou-juiz-garantias. Acesso em: 03 dez. 2022.BACHA E SILVA, Diogo e CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. O paradoxo dos paradoxos processuais? Conjur, 2021. Disponível em:https://www.conjur.com.br/2021-mar-01/bacha-cattoni-paradoxos-paradoxos-processuais.Acessoem: 03 dez. 2022.

[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 572. Rel. Min. Edson Fachin. Julgamentoem: 18/06/2020. DJe: 07/05/2021, p. 51.

[3] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 572. Rel. Min. Edson Fachin. Julgamento em: 18/06/2020. DJe: 07/05/2021, p. 268.

[4] LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. In. The American Political Science Review, vol. XXXI, n° 03, 1937, p. 417-432.

[5] LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, II. In. The American Political Science Review, vol. XXXI, n° 04, 1937, p. 638-658.

[6]LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, I. In. The American Political Science Review, vol. XXXI, n° 03, 1937, p. 418.

[7] Ibid., p. 428.

[8] Ibid., p. 428-430.

[9] Ibid., p. 430.

[10] Ibid., p. 430-431.

[11] Ibid., p. 431.

[12] Ibid., p. 431.

[13] Ibid., p. 431-432.

[14] Ibid., p. 432.

[15] Ibid., p. 432.

[16] Ibid., p. 432.

[17] Ibid., p. 432. Tradução livre de: “Government is intended for governing. Fascism has declared war on democracy. A virtual state of siege confronts European democracies. State of siege means, even under democratic constitutions, concentration of powers in the hands of the government and suspension of fundamental rights. If democracy believes in the superiority of its absolute values over the opportunistic platitudes of fascism, it must live up to the demands of the hour, and every possible effort must be made to rescue it, even at the risk and cost of violating fundamental principles”.

[18] LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights, II. In. The American Political Science Review, vol. XXXI, n° 04, 1937, p. 638.

[19] Ibid., p. 656.

[20] Ibid., p. 657.

[21] Ibid., p. 657.

[22] Ibid., 657-658.

[23] Cabe, contudo, registrar que o fascismo não seria assim tão incipiente nos EUA. Sobre isso, ver Adorno, T. W. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora Unesp, 2019.

[24] Ibid., p. 659.

[25] Seguimos aqui, sobretudo, a posição a respeito do tema de LenioStreck. Ver, entre tantos outros, seu recente artigo sobre o tema, STRECK, Lenio Luiz. As críticas de Gandra ao STF e a história do crocodilo debaixo da cama. Conjur, 2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-dez-01/senso-incomum-criticas-gandra-historia-crocodilo-debaixo-cama. Acesso em: 03 dez. 2022.

[26] CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. A democracia constitucional no Estado Democrático de Direito. Empório do Direito, 2016. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/a-democracia-constitucional-no-estado-democratico-de-direito-por-marcelo-andrade-cattoni-de-oliveira. Acesso em: 01 dez. 2022.

[27] FERNANDES, Fernando Augusto. Manifestação por golpe militar é crime, mesmo desarmada. Conjur, 2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-nov-04/fernando-fernandes-manifestacao-golpe-crime-mesmo-desarmada. Acesso em: 03 dez. 2022.

[28] Ibid.

[29] Ibid.

[30] Mais uma vez: STRECK, Lenio Luiz. As críticas de Gandra ao STF e a história do crocodilo debaixo da cama. Conjur, 2022. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-dez-01/senso-incomum-criticas-gandra-historia-crocodilo-debaixo-cama. Acesso em: 03 dez. 2022.

 

 

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