Sim, a culpa é nossa! Entre um oceano de fenômenos inexplicáveis, houve um espaço reservado ao dia 2 de outubro de 2017. Com a morte de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, Magnífico Reitor da Universidade Federal de Santa Catarina, veio à tona uma onda de discursos moralistas: “Se fez isso, tinha culpa no cartório”, “Não quis enfrentar a prisão”, “Não aguentou o peso da culpa” – as frases de efeito descem uma infinita ladeira às mais densas e repugnantes náuseas.
Aos moralistas, em regra hipócritas, foge o busílis: quando um dedo denuncia, outros três fazem a “confissão”. Àqueles que se preocupam mais com o julgamento do que com a efetiva justiça, escapa a essência de uma morte que significou algo muito distinto de uma assunção de culpa, mas o enfrentamento à espetacularização do processo penal, à ultrainstrumentalização das medidas cautelares extremas, à condenação antecipada e indiscriminada daqueles que, muitas vezes, não são sequer acusados ainda (e mesmo que o fossem).
Crescemos acreditando que a ditadura havia sido derrotada na década de 1980. Amargo engano. Os fascistas nos cercam e não perdem uma oportunidade de externar seus pensamentos segregantes, de agir consoante suas crenças nefastas. E, não muito diferente do que ocorreu durante os anos de chumbo – em que a Polícia era temida pela postura truculenta e o Poder Judiciário majoritariamente se omitiu diante das atrocidades praticadas -, os fascistas não usam apenas fardas, mas também togas, assim como distintivos. Cada qual com as suas armas, capazes de matar sem efetuar sequer um disparo. Mas o sangue se derrama da mesma maneira, não se eximindo da responsabilidade as ditas autoridades pela arguição da “mera” prática de “atos de ofício”. Carregam o fardo das suas decisões, tenham sido por pouco apreço aos estudos, tenham sido por simples vaidade e interesse midiático.
E tão cruéis quanto os que detêm o poder são aqueles que aplaudem esse tipo de ato e gritam frases como as expostas no começo deste texto, na ignorância de mitigar um Estado Democrático de Direito também em seu próprio desfavor. Parece-nos que a visão desses pretensos cidadãos se dá por meio de lentes que distorcem os fatos e suas consequências, a ponto de banalizar a morte e desrespeitar um direito tão caro quanto a presunção de inocência.
Sem a pretensão de transformar quem falece em um santo, deve-se reconhecer as inúmeras qualidades do saudoso Professor Cancellier, as quais vêm sendo devidamente enaltecidas pelos mais diversos meios. Longe de ser perfeito, como qualquer ser humano; com posicionamentos jurídico-políticos por vezes distintos dos nossos; mas, acima de tudo, uma pessoa aberta a todas as espécies de ideias e respeitadora das diferenças. Morreu vítima justamente da intolerância e do desrespeito ao outro. Morreu pelas mãos de operadores de um processo penal datenista, cujos interesses vão muito além dos formalmente expressos e ficam muito aquém de um ideal de Justiça. Morreu, dando voz a tantos que passam pelas mesmas violações a que foi submetido, mas que não têm como expressar sua revolta.
E a culpa é nossa! É nossa por nos calarmos diante desse quadro de violência estatal; por não lutarmos contra os bárbaros atos que o Brasil testemunha; por acatarmos condenações antecipadas e infundadas; por sermos omissos em um mundo em que os fascistas se manifestam livre e enfaticamente. A culpa é nossa… E só há uma forma de redimir nossas falhas: o combate à ditadura velada que vivemos e o enfrentamento a qualquer violação de direitos, sejam de quem forem. Porque o Professor Cancellier nos deixou, mas sua voz continua muito forte. E tenho certeza que nos grita “Lutem!”.
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