Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069, promulgado em 13 de julho de 1990, foi lançado, no Brasil, num período de intensas ebulições políticas, tendo seu nascedouro sido anos antes, ainda durante os governos militares que acirraram o tratamento dado àqueles e àquelas que fossem considerados fora dos padrões da Ditadura Militar, o que, na legislação, estavam incluídos no contexto de situação irregular que, compreende-se, pobres.
Ainda durante a Doutrina da Situação Irregular, que regeu o segundo Código de Menores (1979), pôs-se em questão o tratamento do Estado diante destes sujeitos a quem ele deveria proteger, mas somente incidia como sendo objetos de intervenção. Foi diante das gravíssimas violações de direitos veiculadas na imprensa, em geral, que movimentos sociais, profissionais que lidavam com este segmento, intelectuais da área, dentre outros, movimentaram-se e estabeleceram critérios para dar amparo legal à preservação dos direitos deste público, de modo que se definissem medidas de proteção para sujeitos até então subjugados pelo poder público (MARCÍLIO, 2006).
Para encurtar nossa conversa, o ECA foi elaborado a partir de princípios que definiam crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e em condição peculiar de desenvolvimento, sendo agora regido pela Doutrina da Proteção Integral, que determina que todas as crianças e adolescentes do país estão sob sua égide. Dividido em duas partes, o ECA consiste numa legislação que opera a partir das medidas protetivas e das medidas socioeducativas, sendo as primeiras alvo da nossa análise.
É neste ponto que imponho a controvérsia a qual se concentram as medidas protetivas, aquelas medidas estabelecidas no âmbito da legislação, executadas a partir de um sistema amplo de proteção que devem, ou deveriam, como o próprio nome diz, proteger crianças e adolescentes de todo território nacional.
Controvérsias porque, com o advento do ECA, bem como da Lei nº 13.257, de 08 de março de 2016, que versa sobre as políticas públicas para a primeira infância, dentre tantas outras leis posteriores a ele, foi criado um sistema integrado de políticas voltado para o público infantojuvenil, cujo objetivo é proteger. Refere-se, portanto, ao Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes (SGDCA), uma rede de proteção e defesa atenta a toda e qualquer violação de direitos. Nesta rede, foi costurado um fluxo de atendimento que vai desde a entrada das crianças até os encaminhamentos e acompanhamento acerca das consequências das violações às quais as crianças são expostas. Este sistema deve dar amparo a toda criança e adolescente com direito violado.
Rompendo com a perspectiva das legislações anteriores, o ECA determina, pois, a proteção imediata de crianças e adolescentes em caso de violações de direitos. Diversas outras leis se somam ao ECA como reforço para a garantia da proteção integral. Entretanto, é fato que, apesar do Art. 4º do ECA (Lei nº 8.069, 1990) afirmar que
é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária,
incumbe-se a previsão de questionar porque nós, profissionais, operadores do direito, recebemos tantas crianças e adolescentes com direitos já violados. Não tem como não nos perguntarmos porque só chegamos, ou só somos convocados a atuar depois que as crianças já foram abusadas, exploradas, abandonadas, agredidas, e, sendo assim, seguem com estas e outras formas de opressão às quais continuam sendo diariamente submetidas.
É a experiência como profissional da rede de atendimento que compõe o SGDCA que me faz questionar a todo tempo, a cada estudo psicossocial que temos que elaborar, a cada escuta de uma mãe desesperada pela dor de um filho, ou das próprias crianças, porque o Estado Democrático de Direito, ironicamente, não consegue garantir a proteção integral de crianças e adolescentes do nosso país.
Mais que isso, seria previsível, quem sabe, a escrita de uma parte sobre “medidas preventivas”, já que o ECA, apesar de uma legislação ampla e elogiada, não consegue chegar ao que se destina, que é a proteção integral, de forma efetiva? A esta indagação, não tenho respostas. Mesmo que existisse uma parte, na legislação, que aprofundasse sobre medidas de prevenção, não há garantias de que, assim como acontece com as medidas protetivas e socioeducativas, seriam efetivas.
Não sei como realizar o sonho da proteção integral, nem mesmo como romper com o ciclo das violências que já se instalaram Brasil adentro, violentando corpos inocentes, mas sei que, enquanto vivermos neste sistema nefasto que produz miséria, mais violências encontrarão destino em corpos infantis e adolescentes. Somente a ruptura radical com o modo de produção advindo das políticas neoliberais servirá como um caminho para salvaguardar nossas infâncias e adolescências.
No nosso horizonte, é preciso condensar ações que pretendam o respeito à vida e a igualdade, sem distinção de classe, raça ou gênero. Para isso, é preciso questionar, resistir e superar a ordem capitalista neoliberal que, em nada, contribui para o resgate dos pequenos corpos ainda massacrados por esta lógica. Não há defesa de reformas dentro de um projeto neoliberal, é preciso superar a desordem das coisas e imprimir a prioridade de ações: a proteção integral e efetiva de crianças e adolescentes em todo território nacional.
Sabendo que a História é fadada à repetição, refletir sobre os direitos das crianças e dos adolescentes consiste num trabalho que vai ao encontro de questionamentos necessários acerca do modo como, historicamente, este público, especialmente em sua face empobrecida, foi tratado no Brasil.
Mesmo enquanto objetos de proteção por parte do SGDCA, as ações destinadas ao público infantojuvenil partem da pressuposição de que a vida desta criança, em alguma medida, não foi protegida, seja pelo abandono, seja pela falta de condições materiais ou de quaisquer situações que a colocaram em risco (PINHEIRO, 2006). A pertinência da reflexão sobre o lugar de proteção destinado a estes sujeitos, que, com frequência, transforma-se em lugar de controle, reverbera no próprio conservadorismo das ações voltadas a este público, sendo, ainda, legitimadas pelas forças ideológicas dos aparelhos do Estado (ALTHUSSER, 1970) responsáveis pela proteção.
Com isso, digo que os próprios serviços de assistência que compõem o SGDCA, muitas vezes, coadunam com as violações que estas crianças e adolescentes vivenciam, pois não protegem integralmente, revitimizam, afastam das famílias quando ainda há vínculos e tornam a machucar.
É preciso que todos saibam que proteger crianças e adolescentes, independente de seus lugares na cadeia da pirâmide social, é uma obrigação de toda a sociedade, não só do Estado, não só da família, todos em uma força conjunta, firmes na esperança de que é através de ações coletivas, solidárias e integradas, visando, sobretudo a prevenção, que nossas crianças e adolescentes estarão a salvo de quaisquer formas de violações.
É através da resistência que advém da arte que pretendo não finalizar, mas abrir esta discussão, como afirma o semideus Milton Nascimento, “pois não posso, não devo, não quero viver como toda essa gente insiste em viver, não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal”[1].
Notas e referências
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. Lisboa: Editorial presença, 1970.
Lei nº 8.069. (1990, 13 de julho). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República.
Lei nº 13.257. (2016, 08 de março). Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância. Brasília, DF: Presidência da República.
MARCÍLIO, M. L. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Aderaldo & Rothschild Edições Ltda, 2006.
[1] Letra da música “Bola de meia, bola de gude”, composta e interpretada por Milton Nascimento.
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